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Opinião|45 anos do golpe

Há 45 anos acontecia o golpe militar. Deu-se da madrugada do dia 31 de março para 1 de abril de 1964. Os militares fixaram a efeméride em março por acharem que ninguém levaria a sério uma quartelada que se comemora no dia da mentira. E assim ficou, o golpe sendo lembrado ano após ano como "Movimento Revolucionário de 31 de março", ou a "Redentora", como se dizia cinicamente e pelos cantos.

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Minhas lembranças daquela madrugada são poucas, porém intensas. As famílias acompanhavam o desenrolar dos acontecimentos pelo rádio. Meu pai saía à janela e comentava as novidades aos gritos com o vizinho do lado, na casa geminada à nossa. Esse vizinho era um gaúcho que torcia contra Jango e, a certa altura, sacou um revólver e deu um tiro para o alto, no auge da exaltação.

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Até hoje se discute se poderia ter havido resistência. O 3º Exército estava com Jango e poderia enfrentar os rebeldes. Talvez fosse a guerra civil, de consequências imprevisíveis. Darcy Ribeiro tinha outra impressão: os revoltosos seriam tão hesitantes que, ao primeiro sinal de resistência, guardariam as baionetas e colocariam o rabo entre as pernas. Jamais saberemos, mesmo por que a resistência simplesmente não aconteceu. Como disse um historiador, no único momento em que a esquerda deveria ter pego em armas, para defender um governo constitucional, ela se omitiu.

A minha geração, e outras também, tiveram a vida cortada pela ditadura, de uma maneira ou de outra. Passei a adolescência e a juventude sob um regime ditatorial e isso não se apaga. Claro que tudo é história e ela é dinâmica. Assim sendo, também é óbvio que houve várias fases nesse período de 21 anos. Mas posso assegurar que nunca houve por aqui nada parecido com uma "ditabranda" como andou afirmando um certo jornal. Com graus de variação, foi horrível e frustrante viver durante aqueles anos, sem informações, sem garantias, sem expectativas, muitas vezes sob a sensação do medo. Muita porra-louquice do período se explica por isso. Tudo somado, a ditadura foi um grande atraso na história brasileira e um imenso drama na vida das pessoas. Tudo isso tem de ser lembrado e relembrado, sobretudo agora, quando se sente no ar um certo movimento revisionista que, embora envergonhado, tenta insinuar que "não foi tão ruim assim, etc." Pelo contrário: foi péssimo. A única coisa boa da época da ditadura era a maneira como resistíamos a ela. E essa não era uma qualidade dela, mas nossa.

Por isso é sempre bom voltar ao assunto e de maneira esclarecida. Por exemplo, vendo o excelente documentário Cidadão Boilesen, em cartaz no Festival É Tudo Verdade, sobre o qual já falei e escrevi neste blog. Esse tipo de filme dá uma ideia do que foi aquele tempo a quem não o viveu. Uma ideia apenas, porque a experiência de quem passou por aquilo é intransferível.

Há outros documentários fundamentais, como Jango, de Silvio Tendler, e, o maior de todos, Cabra Marcado para Morrer, de Eduardo Coutinho, cuja própria história de realização é marcada pela ditadura (começa em 1964, tem a filmagem interrompida e só se completa nos anos 80). Há também os filmes mais recentes, como Lamarca, Caparaó, Hercules 56, etc. Quanto aos livros, acho que a série de quatro volumes de Elio Gaspari sobre o período ditatorial é uma excelente referência. Especificamente sobre a luta armada, gosto de Combate nas Trevas, de Jacob Gorender. Há toda uma literatura de depoimentos, que vai de Fernando Gabeira (O que é Isso, Companheiro?) a Alfredo Sirkis (Os Carbonários), interessante de se ler. Existe uma boa biografia de Lamarca, de Emiliano José, e outra, de Carlos Marighela, está sendo preparada.Seria um crime não lembrar de Iara, de Judith Patarra, sobre a guerrilheira Iara Iavelberg, morta no cerco a Lamarca. Figuras da ditadura, como Sérgio Paranhos Fleury ou o Cabo Anselmo, também ganharam perfis.

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Os livros vão surgindo e os filmes idem. A ferida de 1964 ainda não cicatrizou. Talvez pela maneira superficial como foi conduzida a transição. Muita coisa foi empurrada para debaixo do tapete. E esse lixo costuma voltar. Boilesen é um sintoma disso.

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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