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Opinião|Cine Ceará 2021: A praia do fim do mundo

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FORTALEZA - O último dia de competição do Cine Ceará 2021 teve o novo filme de Petrus Cariry, A Praia do Fim do Mundo. Muito bonito, fotografado em preto e branco pelo próprio diretor, com impacto visual e sonoro para uma história de demolição, a exemplo de outros que vêm sendo apresentados nesta edição do festival. Coincidência falar em ruínas no país de Bolsonaro? Nem tanto. "É o inconsciente coletivo que leva os filmes para essa direção" arrisca o cineasta. 

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De fato, há um diálogo bastante evidente, embora talvez inconsciente, entre esse filme e o curta Mar Concreto. Ambos falam de casas e cidades inteiras invadidas pelo mar. Há dados reais, e se o curta debruça-se sobre a praia de Atafona, no litoral fluminense, o longa ambienta-se na cearense Icaraí. 

Há esse dado ambiental que preocupa a todos que têm um pingo de juízo na cabeça. O aquecimento do planeta é uma evidência e leva à expansão dos oceanos. Além disso, as mexidas na natureza têm sido feitas de maneira selvagem. Aqui mesmo, em Fortaleza, a população - e os turistas - ressentem-se das intervenções na Praia de Iracema, que, com um aterro radical, tornou-se um imenso e inóspito deserto de areia, com mar perigoso para os banhistas. O próprio mar foi jogado à distância e saiu do ângulo de visão dos que caminham na orla. Algo fantasmagórico. E assustador. 

Também de fantasmas é povoado o filme de Petrus. Há uma família. O pai sumiu. A mãe (Marcélia Cartaxo) procura manter-se na casa, que está sendo devorada pelas águas. A filha, Alice (Fátima Macedo), quer vender a propriedade enquanto é tempo de sair de lá. Um estranho, cujo rosto fica quase o tempo todo nas sombras, ronda a habitação. A casa range, as ondas batem com violência, o ruído é ensurdecedor. 

 Claro que é um filme de cinéfilo e os críticos, durante o debate esmiuçaram todas as influências possíveis, citações visuais mesmo: Leon Hirszman, Mário Peixoto, Carl Dreyer, Lucrécia Martel, etc. Tenho dúvidas se esse exercício de erudição nos ajuda a compreender um filme em sua singularidade. Me parece mais que todo autor (Petrus é um deles) é uma soma de referências (e não apenas cinematográficas) acumuladas durante a vida , que ele reelabora de maneira original. 

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O resultado é uma obra potente (uso esse termo com economia), que expressa um mix do desalento contemporâneo - preocupação com a destruição do planeta pelo capitalismo voraz, ruína de um país por um governo louco e eleito pelo povo; dissolução dos laços pessoais sob o peso dessa situação distópica. A sensação é mesmo de fim de um mundo, que usa essa praia terminal como metáfora. 

Para ajuntar mais uma comparação, é como se vivêssemos na Comala de Juan Rulfo (em Pedro Páramo): caminhamos entre fantasmas que não sabem se estão vivos ou mortos. Nem sabemos nós mesmos se ainda pertencemos ao mundo dos vivos, o que já é uma fantasmagoria em segundo grau. 

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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