Luiz Zanin Oricchio
03 de fevereiro de 2018 | 18h24
Ando lendo ‘Tumulto’, de Hanz Magnus Enzensberger. Quando terminar, comento o livro todo.
Por enquanto, gostaria de anotar um momento da leitura. O autor está na União Soviética, em 1966, e faz um diário de viagem. Em determinado momento, conta que conheceu a poeta Margarita Aliger.
Fala dela como de uma personalidade inesquecível. Da serenidade como encarava o fim dos sonhos utópicos. Vale citar, em tradução pessoal e portanto meio tosca: “O massacre de suas ilusões políticas foi um processo paulatino. É difícil precisar onde as ofensas desembocam em resignação e onde começa a sabedoria”.
Margarita encarou o stalinismo de cabeça erguida. Tranquila: “Não se enfrenta a repressão com protesto ruidoso, mas elevando os olhos ao céu – um gesto próprio da Torá – e encolhendo os ombros levemente. Quando os primeiros dissidentes foram à Praça Vermelha, julgou que tinham a justiça ao seu lado, mas suas manifestações lhe pareceram teatrais. Qualquer cinismo lhe era alheio”
Belo texto, o de Enzensberger, hein?
Curioso sobre a personagem, fui procurar saber algo dela. E, logo de cara, deparei com o magnífico poema sobre Leningrado que reproduzo abaixo.
Antes, uma nota pessoal. Estive na União Soviética em 1980, sob Brejnev. Achei o país pesado e opressivo, ainda que fascinante. Os edifícios da era Stalin, em Moscou, pareciam dizer que aquilo era para sempre. Dez anos e pouco depois…
Enfim, viajei para a então Leningrado, hoje São Petersburgo. Muita coisa me impressionou naquela bela cidade, berço da Revolução Russa. Mas nada de mais tocante que o museu do Cerco a Leningrado, na 2ª Guerra, no qual morreram um milhão de civis, de fome e frio.
Há muita coisa a ser vista nesse museu, mas uma em particular ficou na minha memória: um pedacinho de pão preto, guardado sob uma cúpula de vidro, como uma relíquia. Era aquela a ração diária de cada soviético. 120 gramas e, para dar alguma consistência, misturava-se serragem à massa. Povo heroico.
Abaixo, o poema de Margarita Aliger
DE PRIMAVERA EM LENINGRADO
No curso daquele longo inverno
você repetia, voz serena,
esmagando-lhe a treva de ferro:
“Resistiremos. Somos de pedra”.
Estreitava-se o anel venenoso.
O inimigo sempre mais chegado.
Podíamos vê-lo rosto a rosto,
feroz, como fazem os soldados.
Leningrado sem luz e sem água!
Rações de pão:cento e vinte gramas…
Como animal ferido o céu gane,
céu mortiço, nuvens estagnadas.
As pedras suspiram,
lajes ringem,
e a gente encontra força e vive.
Os mortos se empilham, um a um,
guerreiros numa cova comum.
Afinal cansou-se o próprio inverno.
Os turvos horizontes se abriram.
E surgem casas negras do inferno
das bombas. Mortas. Não resistiram.
E vamos nós dois passando pontes
sob a asa triunfal de maio,
você se alegrava sem dar conta
do porquê desse sentir-se gaio.
Uma nuvem mostrou-se no alto,
uma brisa esfriou-nos os lábios.
Falávamos ambos num sussurro
do tempo passado e do futuro.
Vadeamos uma longa treva,
passamos pelas balas em crivo:
Você dizia: “Somos de pedra”.
É mais do que pedra.
Estamos vivos.
(1942)
[Tradução de Haroldo de Campos]