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Cultura, dívidas e dúvidas. Normal?

Meu tipo inesquecível

Você faz uma coisa por décadas seguidas, percorre os mesmos caminhos com outros olhos, se concentra no que não viu antes e tenta recuperar o que viu antes - às vezes não reencontrando, porque memória tem dessas. Puxa, já escrevi tanto sobre o Jeff Beck. É claro que já escrevi mais sobre os Beatles mas como disse Tom Jobim, "aí não vale por que eles eram quatro". "O Jeff Beck lançou disco novo", foi o que eu disse. Tenho um monte de amigos que bocejam sempre que eu começo uma frase assim. Parentes também. Próximos, bem próximos. Não faz mal. Há duas décadas quando entrevistei o guitarrista inglês pelo telefone disse que "parecia que estava conversando com um velho amigo meu". Jeff riu e respondeu, "é, a música tem esse poder". É verdade, saiu na Guitar Player brasileira e está no site dele (é, precisa procurar um pouco para achar). Essa foi a primeira vez em que ele veio ao Brasil. Falei a convite do meu amigo, também guitarrista e jornalista Sérginho Basbaum; na segunda falei do show a convite da TV Cultura. Quando ele veio a terceira vez, eu não fui, estava viajando. Faz parte. Agora Jeff Beck está lançando mais um disco. Segundo o marketing em volta ele conheceu duas meninas na casa do baterista do Queen, uma cantora e uma guitarrista. As duas inglesinhas o levaram para um produtor que se cercou de um baterista e um baixista, os três italianos. Rosie a cantora escreveu as letras de acordo com o pensamento de Jeff. Perfeito. Um roteiro tipicamente beckiano.

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Por Redação
Atualização:

Na televisão Foto: Estadão

Mais tranquilo agora, porque não houve nenhum atentado na abertura da Copa (ih, é Olimpíada!), feliz com a Rafaela e satisfeito com o novo Jason Bourne, retomei meu reencontro com Geoffey Arnold (A.K.A Jeff) Beck. A primeira vez em que eu o vi foi em um programa americano de TV (na Tupi?) chamado Shindig, aqui rebatizado Na onda do ié ié ié. 1966, tipo isso. Ele estava com os Yardbirds e eles tocaram For your love, mais tarde glorificado pelo Renato e seus Blue Caps como Vivo só. Na verdade nem foi ele quem gravou a música mas Eric Clapton a quem substituiu na banda (fui ver o tal programa no youtube e está lá, Beck tocando um violão de 12 cordas, como em um episódio de Além da Imaginação). Foi o que bastou. Comecei a acompanhar a carreira dele pelas revistas. Não havia internet ainda e disco importado além de caro era raro e eu só fui ouvir o guitarrista de novo em 1970, na casa de outro guitarrista. O sino-polaco-brasileiro Lanny Gordin, que na ocasião me mostrou também Johnny Winter e John McLoughlin. Mas Beck foi o que pegou. Os álbuns Truth e Beck Ola traziam um rock pesado e uma guitarra incrível. Eram ruídos e mais ruídos. Com o instrumento altíssimo ele deslizava ou esfregava a palheta sobre as cordas no braço da guitarra e fazia glissandos (como quando você corre os dedos pelas teclas do piano do grave para o agudo ou vice versa). Logo eu ouviria esse mesmo efeito em um concerto de Astor Piazzolla no TUCA - onde entrei por engano, tinha ido comprar ingressos para o show Gil & Gal. De quebra a banda desses primeiros discos nos apresentou a Nicky Hopkins no piano, Rod Stewart nos vocais e Ronnie Wood no baixo.

Primeiras linhas Foto: Estadão

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Hopkins tocaria com todo mundo, do Who aos Stones - eu assisti ao pianista no show do Joe Cocker na Portuguesa. Rod virou o Rod Stewart depois de agitar durante anos com o Faces, sempre ao lado de Wood, hoje nos Rolling Stones. A essa altura do campeonato o nome do guitarrista inglês já estava falado. Gravou com Donovan, com as GTOs do Frank Zappa, foi cogitado para entrar no Pink Floyd e nos Stones - no lugar de Syd Barret e de Brian Jones. Mas ficou por isso mesmo - anos mais tarde quando Mick Taylor deixou os Stones pensaram nele de novo, novamente sem resultados. Em meados dos anos 1980 Jeff e Rod gravariam People get ready de Curtis Mayfield. Curiosamente, foi a guitarra que se tornou um clássico nessa versão. Volta e meia alguém fala em reuni-los mas o guitarrista mantém sua postura: "eu e o Rod temos uma relação de amor e ódio. Ele me ama e eu o odeio" (da fala de Jeff apresentando o "amigo" no Hall of Fame, na frente do próprio!). Antes mesmo do álbum Truth ter sido pensado houve uma tentativa de formação de grupo por parte Jimmy Page, padrinho de Beck nos Yardbirds, que reuniu Keith Moon do Who na bateria e John Paul Jones, então um músico de estúdio colega do primeiro, no baixo. Gravaram uma única música, Beck's Bolero, composição de Page - e, sim, o bolero é uma referência a Ravel. Logo Moon voltou para seu grupo, Beck para seu disco e Page e Jones formaram o Led Zeppelin - que se chamava New Yardbirds no começo. You shook me, por exemplo, blue de Willie Dixon destaque do Led Zeppelin I, foi gravada pelo Jeff Beck Group meses antes.

O estiloso Foto: Estadão

Na época eu não sabia, mas Jeff sofreu um acidente de carro quando ia encontrar-se com dois americanos para formar um novo grupo de rock pesado. O projeto foi adiado e depois de um ano de hospital o inglês gravou dois discos, ainda sob o nome J.B. Group, mas mais voltados para o soul, o R&B. Gravou Stevie Wonder e Bob Dylan, por exemplo, à sua maneira. A banda agora trazia Bob Tench nos vocais, Clive Chaman, baixo, Max Middleton, teclados, e Cozy Powell, bateria. Depois da dissolução Powell virou um super astro, vindo ao Brasil com o Whitesnake (não apareceu na coletiva) e tocando com super bandas como Black Sabbath, Rainbow e um improvável Emerson, Lake & Powell. Morreu de acidente de carro em 1998. Middleton teve vários grupos com os outros componentes e continuou ligado à Beck - Freeway Jam, de sua autoria, continua no repertório de Beck e mereceu um cover de Pepeu Gomes. Middleton quase veio ao Brasil com o ex-stone Mick Taylor, mas desistiu à ultima hora, porque perdeu o pai. Eu e o Lanny, que conheceria Tench em Londres, tivemos os dois discos - Lanny era tão fã usou frases musicais de Beck em seus solos mais famosos com Gal. A primeira idéia do guitarrista inglês tinha sido gravar com os bambas da Motown, chegando a marcar estúdio e sentar-se com eles sendo esnobado. Disseram para Beck, "nós não improvisamos. Você trouxe algo escrito? Não? Ok. Bye, bye". Escaldado Jeff gravou o segundo disco, chamado "disco da laranja", com Steve Cropper, soulman branco de Memphis, Tennessee.

Rastros Foto: Estadão

O tal trio de rock pesado só foi materializar-se lá por 1973. O Beck, Bogert & Appice com seus dois discos, um deles nunca lançado e mais um ao vivo para o mercado japonês, provou que Jeff Beck apesar de ser um dos maiores guitarristas de rock'n'roll jamais seria moeda corrente da indústria do Rock, que vivia então $eu$ melhore$ dia$ - com Bee Gees, Peter Frampton, Fleetwood Mac e o tal rock de arena faturando mais do que esporte profissional, isso no mercado americano! Entre o pouco que sobrou dessa fase contabiliza-se Superstition que Stevie Wonder entregou para Beck - e gravou depois, claro. O baixista Tim Bogert foi dar aulas e Carmine Appice  durante anos figurou como baterista de... Rod Stewart, quem diria? Tempos difíceis, mas Jeff Beck não estava tão perdido assim. Duas presenças o influenciaram profundamente. Até hoje. Jimi Hendrix, em sua curta passagem, e John McLaughlin, um músico de estúdio que metamorfoseou-se em Mahavishnu e fez de sua Orchestra a Nova Ordem. O tecladista Jan Hammer viria a ser parceiro de Jeff Beck e o baterista Billy Cobham o levaria a conhecer um menino prodígio, Tommy Bolin, que morreu cedo de overdose depois de tocar com grupos como o americano James Gang e o inglês Deep Purple. Beck ainda toca Stratus do disco Spectrum de Cobham, cenário para o melhor trabalho de Bolin. Narada Michael Walden, que substituiu Cobham naMahavishu e mais tarde co-autor da trilha de Bodyguard (Whitney Houston), há muito toca com Beck vindo com ele ao Brasil.

Disco novo! Foto: Estadão

Em 1975 Jeff Beck gravou Blow by blow com produção e arranjos de George Martin - que lhe daria em 1998 A day in the life que Beck tornou sua. Com esse disco JB tornou-se o músico que conhecemos e que eu admiro profundamente. Cada vez menos lenda do rock ou memória viva. Jeff Beck continua sendo um guitarrista de som único, veloz ou delicadíssimo conforme o momento, de timbre único, reconhecível, mestre manipulador do que há mais novo em tecnologia para a guitarra, jazzy, bluesy, jeffy. Em Anthology George Harrison fala de pessoas que parecem o que são, citando Ravi Shankar e sua cítara, Eric Clapton e os blues e "Jeff Beck... com aquele jeito todo Jefffff Beck dele", brinca. Quando Mick Jagger foi fazer carreira solo quem ele chamou para machucar o ego de Keith Richards? Quem? Nosso herói. Mesmo assim Jeff estava no O2 londrino na comemoração dos 50 anos dos Stones. Entre seus feitos estão a participação no disco Private dancer que marcou a volta de Tina Turner e turnês ou aparições ao lado de Santana, Stevie Ray Vaughan, Brian Wilson, Eric Clapton, ZZ Top, Les Paul, Paul Rodgers, Joss Stone, Bon Jovi, David Gilmour e Morrisey para mencionar alguns. No momento, o músico excursiona pelo mundo com seu disco seu disco novo Loud Hailer, gravado no Electric Lady Studio de Hendrix e a frente de uma banda que tem como destaques a guitarrista Carmen Vandenberg e a vocalista e compositora Rosie Bones, novatas que formam o duo inglês Bones. Jeff Beck divide a estrada com outra figura rara e velho conhecido de nosso país, Buddy Guy e sua Damn Right Blues Band.

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Da parede para as bancas Foto: Estadão

Cara, eu adoro esse cara. E olha que só cheguei até 1975. Ele é meu amigo. Não sei porque comentei isso com Sean Lennon, quando ele veio tocar em São Paulo com o grupo Cibo Matto, da então mulher dele, e reencontrar-se com Tom Zé. O filho de John Lennon virou-se para mim e disse, "e eu então que fui entrevistar o Brian Wilson e achei que estava falando com meu tio?"

Realmente, não há nada a temer. Temer jamais.

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