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Cultura, dívidas e dúvidas. Normal?

Lendo música

Poxa, morreu aos 84 anos Scotty Moore, o guitarrista de Elvis Presley que ao lado do baixista Bill Black (1926-1965) inventou o rock and roll tal como o conhecemos. Agora, o último sobrevivente dos Blue Moon Boys, que foi como o produtor Sam Philips batizou o grupo formado para gravar e se apresentar com Elvis, é o baterista D.J. Fontana. Calma jovens, pista naquela época era lugar de carro e este D.J. é a abreviatura de Dominic Joseph - assim como o M.C. do Escher é de Maurits Cornelis. Embora seja pouco conhecido Moore se destacou pelos solos maravilhosos que criou. Lawdy Miss Clawdy, Shake, rattle and roll e Mistery train, por exemplo, mesclam jazz, blues, hillbilly, country, e acabaram estabelecendo, ao lado do insuperável momento de Danny Cedrone em Rock around the clock (Bill Haley e seus Cometas), a guitarra do futuro. Na verdade crianças como eu, e não tão crianças como Jeff Beck e Jimmy Page, tínhamos absoluta certeza que quem tocava nos discos era o próprio Elvis. Afinal era o que víamos nos filmes. A verdade só veio mais tarde com a imprensa especializada. Foi onde descobri, por exemplo, que o Beck e o Page também não sabiam da existência de Moore.

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Por Redação
Atualização:

Contém Scotty Moore básico Foto: Estadão

No começo dos anos 1960 minha mãe lia Querida e Grande Hotel, meu pai Seleções do Reader's Digest enquanto O Cruzeiro e Manchete serviam para todos. Eu tinha Diversões Escolares, meus livros e gibis e vibrava toda vez que meu pai aparecia com coisas mais interessantes como a "majestosa", pelo tamanho, ilustrações e textos, SR. (Senhor), ou as importadas National Geoghaphic e Life, das fotos deslumbrantes. Quer dizer, não existia nada voltado para os jovens que não cheirasse à fã clube ou à Revista do rádio. Com a explosão dos Beatles, e em seguida da jovem guarda, timidamente foram aparecendo publicações com matérias e letras (mal) traduzidas, mas o que me salvou mesmo foi a maravilhosa banca de jornais e revistas do aeroporto de Congonhas. Em meio à coleção de Tim Tim e aos deslumbrantes jogos de montar (lembram do Visible man?) os primeiros títulos a me chamar a atenção foram a italiana Giovani e a americana 16 Magazine. As duas decretaram a minha alforria no que diz respeito a boatos e a papo furado, afinal um disco dos Beatles levava meses para ser lançado no Brasil e vinha completamente desfigurado, capa, set list, sabe-se lá o que mais. Agora eu tinha informações corretas para impressionar a moçada.

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A Giovani e "I manifesti" Foto: Estadão

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A revista italiana era fundamental. Não que trouxesse alguma informação diferente, mesmo porque italiano me parecia persa, mas a impressão a cores da revista era maravilhosa. E ainda vinha com um poster, I manifesti di Giovani - ter uma coleção deles e poder emprestá-los para as meninas colarem nas paredes nas festas contava inúmeros pontos no ranking dos descolados! O chato é que vinha muito foto de artista europeu tipo Antoine, I Rokes (ingleses expatriados que cantavam Piangi com me), Equipe 84, Adriano Celentano ou I Kings, que ninguém queria. O negócio era espera o próximo mês.

Já a 16 magazine representou para mim uma das primeiras aulas de jornalismo. Foi nela que notei a mania que os americanos têm por celebridades. A revista era dominada por figuras de gosto duvidoso tipo a banda Paul Revere and the Raiders (!?) ou os Monkees que eram misturados com ídolos da televisão como Robert Vaughn, o Napoleon Solo de O agente da U.N.C.L.E. e Leonard Nimoy, o Mr. Spock de Jornada nas estrelas. O que me interessava mesmo estava lá no meio, ou em especiais (os 16 Magazine Specs), disputadíssimos.

A festiva 16 Magazine Foto: Estadão

 

Com o tempo passei a ler a Datebook que, apesar do nominho menina-moça, tinha textos mais encorpados e uma linha editorial maquiavélica. Havia uma seção, teens interview Stars, em que as entrevistas eram feitas pelas fãs. Para se ter uma idéia do clima, em uma delas uma menina pergunta ao Keith Relf, vocalista dos Yardbirds, banda de Beck e Page, sobre suas preferências musicas. Como todo inglesinho Relf desfiou os nomes de dezenas de bluesmen negros dos Estados Unidos, como Elmore James, Robert Johnson, Freddie MacDowell, T-Bone Walker, Big Joe Turner ou Muddy Waters, entre outros. Meio sem graça a menina pergunta "mas você não ouve nenhum americano?" Nunca entendi se foi ironia do editor ou se ele era tapado igual a garota. A revista "consagrou-se" quando, às vésperas daquela que seria a última turnê dos Beatles, em 1966, transcreveu uma entrevista com McCartney e Lennon feitas pela jornalista inglesa Maureen Cleave, do London Evening Star. Apesar de Paul ter declarado que "a América é uma porcaria de um país (sic) onde qualquer negro sempre acaba sendo visto como bandido", merecendo a capa da revista, não provocou um décimo dos protestos dirigidos a John ao dizer que não sabia o que iria "acabar primeiro, se era o rock'n'roll ou o cristianismo?" além otras cositas más, que foram editadas com toda a maldade possível. Quando a banda desembarcou tinha até a Ku Klux Klan esperando - e pensar que eu tive essa revista.

A Datebook que gerou a confusão Foto: Estadão

Ou seja, a turma jogava pesado em termos manipulação de imagem mas apesar de toda essa visão marqueteira as coisas começaram a sair do controle. Ora eram fotos cercadas por tarjas pretas de irmãos, conhecidos e parentes das celebridades, que estavam morrendo no Vietnã (não havia como esconder), ora eram os próprios artistas que se deixavam entrevistar completamente chapados (há uma do Cream em que Clapton e Baker não diziam coisa com coisa para a repórterzinha e Jack Bruce nem se dignou a acordar) ou então apareciam desacompanhados de seus assessores abrindo a boca geral (como a antológica entrevista de Pete Townshend, do ainda-para-ser-lendário Who, publicada no meio da matéria sobre da coletiva de imprensa dos Herman's Hermits, a armação pop daquela semana).

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Rolling Stone de 19/8/71 Foto: Estadão

Em 1967, ano do Sgt. Pepper's e do verão do amor, isso iria acabar com o surgimento da imprensa alternativa e principalmente do Rolling Stone, um jornal nascido em San Francisco (onde mais?) e que mudaria para sempre a relação entre astros e imprensa. O RS rapidinho deixou de ser underground e quando Jimi Hendrix e Janis Joplin morreram em 1970 já podia ser encontrado na banca do Aeroporto de Congonhas. Ele serviu para John Lennon e em seguida Keith Richard (ainda em dúvida se assinava Richards) lavarem a roupa suja de suas respectivas bandas em caudalosas entrevistas (a de Lennon saiu em duas partes).O jornal viraria revista e se mudaria para Nova York, abrigando Hunter S. Thompson, com as incríveis ilustrações de Ralph Steadman, Tom Wolfe, entre outros. A nata.

Nas redações em que trabalhei conheci outras publicações, como a Crawdaddy, anterior à Rolling Stone, de onde saiu Jon Landau, o jornalista que criou Bruce Springsteen. A revista trazia reportagens incríveis como aquela que narrava o sequestro do corpo de Gram Parsons, guitarrista dos Byrds. Ele foi um cara que praticamente criou a fase country dos Stones e que morreu de overdose depois de voltar da Inglaterra usando brincos e batom para horror de seus amigos texanos. Foi muito útil também acompanhar a manjadíssima Billboard da qual todos falavam mas poucos liam. Seguindo suas paradas, conseguia-se enxergar o que significava sucesso, marketing, planejamento. Por exemplo, em 1975, o Led Zeppelin lançou o álbum duplo Physical Graffiti e preparava-se para excursionar pelos Estados Unidos. O disco já entrou em uma posição alta mas, com o passar das semanas, enquanto ia chegando ao topo atraiu os cinco LPs anteriores da banda que na época não figuravam nem entre os 200 mais vendidos. Quando o Led desembarcou toda a discografia estava nos primeiros lugares das paradas. C.Q.D.

The Beatles Monthly Book Foto: Estadão

Até hoje eu me amarro em jornalismo bem feito, entrevistas sinceras, portanto corajosas, pautas imaginativas. Aprende-se muito lendo-se muito. E se der para ser em outro idioma, melhor. Me lembro da primeira fase da Rolling Stone brasileira, lançada em 1971, dirigida por Luiz Carlos Maciel e trazendo delírios impagáveis de Ezequiel Neves. O texto que Ana Maria Bahiana fez sobre os Beatles me fez chorar. Era muita classe. E olha que eu estava vacinado uma vez que já tinha colocado as mãos no Santo Graal da beatlemania. Era uma revistinha que existiu em duas fases, 1963-1969 e 1976-2003. A Beatles Monthly Book. Ela foi o máximo porque era totalmente chapa branca, a voz do(s) dono(s). As fotos eram exclusivas e "quintos Beatles", como os assistentes Neil Aspinall e Mal Evans, o assessor de imprensa Derek Taylor e até mesmo a secretária Freda Kelly (ver o documentário Good ol' Freda), escreviam os artigos. Obviamente os músicos condecorados pela Rainha deviam palpitar o tempo todo.

Quem diria que até para música já houve bom jornalismo. Mesmo sem a internet você conseguia saber quem tocava guitarra com o... Elvis, digamos!

Como diria a velha Freda,

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Tarrah for now! O importante é ter coragem. Temer jamais.

 

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