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Cultura, dívidas e dúvidas. Normal?

Ianque profundo

Desde a época em que dedilhava um violãozinho de plástico - verde e amarelo - dublando músicas do Elvis eu já me sentia fascinado pelo Grande Irmão do Norte, os EUA. Camisas xadrez, umas calças especiais de brim, que mais tarde aprendi a chamar de jeans, denim, enfim, foram acrescentadas à Coca-Cola e às revistinhas do Disney no meu dia a dia. Mas ir até lá que é bom demorou bastante. A Panair, que garantiria as passagens desapareceu, a Disneylândia da Califórnia ganhou uma filial mais acessível na Flórida, mas não para mim, o Elvis morreu, os empregos vieram, o casamento, os filhos, até andar de avião se tornou uma coisa comum, mas nada de sair do país. Eu até já estava virando meio europeu, apesar dos Beatles já terem acabado.

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Por Redação
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Outros tempos Foto: Estadão

Até que em 1998, 28 d.B. (depois dos Beatles), alguém na redação soprou as palavras mágicas, "seu passaporte está em dia?" Que passaporte? Corre para tirar. Pintou, rolou, como dizíamos, um convite para assistir in loco a um show do Garth Brooks - astro country que estava vindo tocar em Barretos. Inacreditável! "Madison Square Garden!" delirei, mas logo me explicaram que seria em Billings, Montana. Montana? A única coisa que me veio à cabeça foi a música do Frank Zappa. Movin' to Montana soon / Gonna be a dental floss tycoon. E toca a reunir casacos de frio e a ouvir conselhos. "Não se preocupe, vai dar tudo certo" - opa! Por que não daria? pensei. "É só ser claro com o sujeito da imigração" - o que para mim é fisicamente impossível. Eu ainda não sabia que Montana era peculiar, que tinha de milícias paramilitares que nem reconheciam o governo, gente que conversava com duendes.

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Finalmente chegou o dia e lá estava eu de mala e cuia e cachecol na mão. O cara da poltrona ao meu lado, tinha cara de espião. Branco, não americano, cabelo escovinha, pediu um monte de garrafinha de whisky e mergulhou em um sono profundo sem emitir um só grunhido. Para se chegar a Billings tinha de ser pinga-pinga - shot-shot? A primeira parada era no aeroporto Dallas/Forth Worth onde seria realizada a temível entrevista com a imigração. Pois não é que o velhinho de ascendência incerta mal olhou para a minha cara, conferiu o visto de trabalho (válido para um ano só) e murmurou algo entre go ahead e good luck. Demais! Como ia ficar duas horas já em solo americano, assumi, welcome to Marlboro Coutry! Vamos fumar! Opa, espera aí. Onde? Logo me indicaram um portão e assim que coloquei o pé na passadeira abriram-se os portões da... América!

Na verdade o que dava para ver era um muro só, mas pelo menos tinha vista para o céu. Instintivamente tirei o cachecol pois estava um sol, digamos, texano. Ato contínuo, fui comprar um cigarro enquanto o avião para Denver não saía e tive minha primeira lição de inglês da curta viagem. Depois de três tentativas de me fazer entender e incentivado pelo tom do What? do balconista quase que gritei com a mesma convicção com que determinadas frases nos saem fácil pela boca quando levamos uma fechada no trânsito, Gimme a Pack of Marlboro!!! E o cara, todo docinho, sure. É isso, assertividade.

Devagar se vai ao lounge Foto: Estadão

A caminho de Denver, segunda escala, um dos maiores aeroportos do mundo, fui percebendo coisas. O número de aviões que decolavam e aterrissavam era estonteante. Dava a impressão que assim que as rodas do jato descolavam do chão um outro embicava acelerando no começo da pista ao mesmo tempo em que o que aterrissou ali do lado mal fazia a curva para o terminal para outro estar descendo com tudo. Sem parar. É de se perder o medo de andar de avião - se deixarmos de lado o rolo que deve ser para o controle de vôo. O tamanho das coisas também me impressionou. Você fica taxiando - que é o que se diz quando o avião fica rolando a caminho do desembarque ou do embarque - uma eternidade, e andando rápido. É como se a pista do Aeroporto de Congonhas fosse da Imigrantes até a Marginal Pinheiros, com as avenidas passando no meio em um nível mais baixo. Estava maravilhado olhando as highways e os carros quando me toquei que o vôo tinha atrasado. Ia perder a conexão para Billings. E perdi.

Pura adrenalina. E ainda não havia celular com net. Felizmente. Cachecol na mão e em minutos de correria já estava confirmado para Salt Lake City onde tomaria outro avião. "E vamos fumar", dava tempo. Só que em Denver não é só sair pela portinha. O smokey lounge (sala de fumantes) ficava em outro concourse (ala) e você passa de um para outro de... trem, metrô. Desce, embarca, passa duas estações e sobe, sobe, sobe até que você chega a um verdadeiro saloon enfumaçado, cheio de telões que no dia estava passando uma final de Golfe (uma mulher tinha atirado a bola na água e estava cercada de cinegrafistas e juízes, imagem estampada na capa da maioria dos jornais no dia seguinte). No tal lounge, um monte de gente fumando um atrás do outro, cercada de copos, muita Fat Tire ("tala larga", cerveja popular). Um mergulho nos Estados Unidos profundo.

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The lost Eagle Foto: Estadão

Não vi nada de Salt Lake exceto o próprio lago da janela do avião, enorme e lindo. Não sei o que os mórmons acharam mas atravessei os concourses correndo - o aeroporto era menor - e segui feliz para Montana. Sobrevoando as Montanhas Rochosas e os picos cobertos de neves ajeitei meu cachecol reconfortado, sensação que acabou assim que a aeromoça abriu a porta do avião em Billings. Puuuff!!! Mormação. 35°C no mínimo. Mínimo como o aeroporto onde o que me chamou a atenção foi um índio dentro de uma redoma de vidro em pé brandindo a machadinha de pedra (empalhado?). Com a troca de avião meu motorista tinha ido embora. Sorte que tinha o telefone dele. O que me apareceu foi um senhor grisalho, bigodinho e tuxedo (smoking) parado ao lado de um resplandecente Oldsmobile '56, branco e conversível! Minha figura não devia ser muito melhor, suando de cachecol na mão e lendo pasmo o cartão que me entregou. Don Hurley, owner, Body Snatchers, etc. (proprietário dessa empresa de carros-dos-sonhos cujo nome é um trocadilho combinando ladrão de cadáver e o filme Invasores de corpos). Don Hurley? Parecia nome de integrante dos Eagles!

(continua)

O importante é manter a coragem. Temer jamais.

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