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Uma geléia geral a partir do cinema

Resnais (1)

Havia prometido publicar a íntegra da entrevista de Alain Resnais, que foi editada na edição de dia 25 de dezembro do 'Caderno 2'. O texto estava enorme e o Bira, meu colega Ubiratan Brasil, que fechava a edição, fez um trabalho criteriosdo. Mesmo assim, restabeleço as duas perguntas que ele cortou. Como já assinalei em outro post anterior, a Sessão Cinéfila do Espaço Unibanco inicia janeiro de 2010 homenageando Resnais, e começa superbem, exibindo amanhã, meio-dia, seu primeiro longa, pelo qual tenho um carinho todo particular. 'Hiroshima, Meu Amor' é um dos meus cults. Leiam a entrevista, que serás dividida em duas partes. As perguntas que faltavam no jornal estarão na segunda parte. Adoro quando Resnais não explica algumas coisas e diz que é 'apenas' o diretor. Resnais!

Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Foi há exatamente 50 anos, no Festival de Cannes de 1959. François Truffaut recebeu o prêmio de direção, por 'Os Incompreendidos', e Alain Resnais, o de melhor filme da crítica, por 'Hiroshima, Meu Amor'. A consagração de ambos selou o reconhecimento internacional da nouvelle vague, o movimento que revolucionava o cinema francês da época. Resnais, em relação a Truffaut e a Jean Luc Godard, já era um veterano, de reputação formada no curta, mas ele é o primeiro a reconhecer a importância que a nouvelle vague teve no desenvolvimento de sua carreira. Nos anos e décadas seguintes, Resnais continuou fazendo filmes faróis. Você pode preferir este ou aquele, mas muitos - quase todos - são marcos inovadores do cinema, além de sucessos no circuito de arte (como 'Medos Privados em Lugares Públicos', que permanece, ininterruptamente em cartaz na cidade, há mais de dois anos). Resnais voltou à competição de Cannes, em maio passado, com 'Ervas Daninhas'. O júri presidido por Isabelle Huppert lhe outorgou um prêmio de carreira, por sua extraordinária contribuição ao cinema. O novo Resnais estreia hoje, como presente de Natal da distribuidora Imovision aos cinéfilos. O presente do Caderno 2 é a entrevista com o autor. Resnais fala com exclusividade, mas a entrevista, a seu pedido, foi feita por e-mail. Ele gravou suas respostas e elas foram transcritas por Catherine Aymar, da Unifrance. - Seu novo filme é um presente, uma espécie de comédia romântica não muito fácil de explicar e mesmo um pouco enigmática. O que o atraiu no livro de Gailly (que não é conhecido dos brasileiros)? - Até agora, eu me recusava a adaptar romances porque achava que o diálogo de um livro não se podia colocar facilmente num filme e, portanto, seria preciso reescrever tudo. Mas quando descobri o romance de Gailly, comecei a ler algumas páginas e as li de um jato. Fiquei tão seduzido por seu diálogo que li correndo seus outros 12 romances, que não conhecia. Acionei meu produtor, pedindo-lhe que verificasse a possibilidade de adquirirmos os direitos da obra completa de Gailly, porque eu não conseguia me decidir por um, entre seus 13 livros. O que me atraía era uma sonoridade, uma voz, e Jean-Louis Livi, que havia lido alguns, me encorajou a seguir nessa direção. Jean-Louis me havia pedido, para acelerar o processo, que procurasse o tema do filme numa peça de teatro, para ganhar tempo. Quando se escreve um roteiro pode-se demorar muito, nove a dez meses, enquanto uma peça fornece um roteiro sobre o qual se pode trabalhar imediatamente. Montar uma produção é complicado, corre-se contra o tempo, é preciso programar o estúdio e os atores, o que pode demorar bastante. Sou a prova viva disso, pois é raro que um filme meu não consuma um mínimo de dois anos. Não é que eu vá trabalhar durante todo esse tempo, o problema é reunir todas as circunstâncias até chegar ao momento em que o filme realmente começa, quando se grita pela primeira vez no set 'Moteur!' (Ação!). - Em Cannes, Gailly disse: "Resnais não filma a literatura. Ele compõe imagens que nos falam de uma coisa inteiramente, do quê eu não estou seguro de entender, mas, na minha maneira de ver, é o que o cinema deveria fazer". O senhor acredita que o importante, num filme, é compreendê-lo ou vivê-lo, emocionalmente? - Para mim, o cinema e não apenas ele, a pintura, a música etc. devem ser uma fonte de emoção, mesmo quando se pretendem didáticos. Já falei dos diálogos de Gailly, mas é preciso encarar também o estilo como ele escreve seus livros, cheio de surpresas e de frases enigmáticas, que ele interrompe de repente, dando a impressão de que tudo é improvisado, quando, pelo contrário, tudo é muito elaborado e possui um charme violento, emprego "charme" no sentido mágico do termo, mas o que eu penso e que nem Gailly poderia prever, é que suas palavras tenham estimulado um certo tipo de imagens. Reivindico que meu desejo era de fidelidade em relação à totalidade de sua obra. Procurei atores que os fotógrafos, assistentes e técnicos, todos, como eu, apaixonados pela escrita de Gailly, considerávamos ideais. A ideia sempre foi encontrar o equivalente do estilo de Gailly, não somente nos diálogos. Para mim, o que há de interessante no filme é a parte de mistério que ele contém e quando esse mistério provoca emoção, esta é a regra do jogo. Se fosse para ser enigmático por nada, não teria o mínimo interesse. - O senhor não tem medo de ser ridículo, porque o comportamento de Michel Dussolier e Sabine Azéma, em cena, toca tanto o ridículo como o sublime. É como se o senhor quisesse nos mostrar a infinita gama das afirmações e incertezas de que homens e mulheres são capazes. O senhor pensa muito na psicologia dos personagens? - Não sei se é o termo, mas a maior parte de nossas ações são intuitivas (não reflexivas) e só depois é que a gente tenta dar uma ordem ou encontrar um sentido nas decisões que tomou. O momento da decisão, em si, depende de uma mistura química que envolve o cérebro e o corpo, como com todos os animais. Não sei se o termo 'psicologia' se aplica, mas quando filmamos uma cena creio que todos, atores, técnicos e o diretor, devemos nos perguntar: "De onde vem esse personagem, o que ele pretende? E o que fará depois?" Isso não precisa necessariamente fazer parte da trama, mas é mais agradável para trabalhar e nos permite discutir num terreno mais sólido, ao invés de dizer "Eu leio o texto sem tentar interpretar o que poderia haver entre o que o roteirista escreveu e o espectador", o que seria uma outra coisa. Com toda humildade, acho que partimos de Stanislavsky, cujas reflexões já tem 100 anos. Será isso a psicologia? Mas é verdade que sempre peço ao roteirista que me faça uma biografia do personagem. Quero saber tudo - seus gostos, doenças, relações familiares, o que gostaria de ter feito na vida, o que não chegou a concretizar e isso, em geral, desencadeia conversas muito ricas entre os atores e os técnicos, que eu, aliás, não gosto de separar durante o processo de feitura do filme. - Dussolier dá a impressão de haver criado para seu personagem uma espécie de outra vida. É isso que o impulsiona em direção à mulher. O que o senhor pensa? - Pensei os atores em várias interpretações possíveis, partindo do princípio de que as pessoas que encontramos na vida são sempre um mistério para nós. Nunca se sabe o que se passa na cabeça dos outros, mesmo as palavras da linguagem podem adquirir um significado diferente, segundo a época em que foram pronunciadas e, por isso, tenho a impressão de que vivemos num mundo de incertezas. Tentamos sempre ser razoáveis, mas nossas ações nem sempre seguem as intenções nem os propósitos que temos. E, às vezes, lamentamos de certas decisões que tomamos, mas que no momento nos pareceram de primeira necessidade. Os personagens, claro, têm contradições, mas isso me parece natural. É como ser fiel à vida cotidiana. Mas, atenção, não digo isso de maneira pedagógica nem pretensiosa. Jamais cometo o equívoco de me sentir superior aos personagens nem me sinto responsável pelo que eles fazem. Tento ser fiel ao roteiro que filmo e me condiciono à mise-en-scène (direção), que não é outra coisa senão a colocação desses personagens em seu espaço, mantendo um tom coerente, não digo justo (quem pode saber?). Esse tom é que garante a unidade do filme, não importa a diversidade de suas partes. - Na saída do cinema, Dussolier encontra Sabine e lhe diz: "Então, você me ama". Parece uma homenagem a 'Um Corpo Que Cai' (Vertigo), quando James Stewart encontra Kim Novak e materializa Madeleine por meio de Judy. Ao mesmo tempo pode-se pensar em 'Hiroshima' e 'Marienbad', em que os homens são sempre persuasivos e querem penetrar/possuir o imaginário das mulheres. A observação procede? - Fico muito feliz e honrado que a cena lhe tenha feito pensar em 'Um Corpo Que Cai', que é um dos meus filmes preferidos, um daqueles que eu admiro enorme e intensamente, mas tenho de admitir que essa influência nunca foi discutida, embora muito me agrade. Pura e simplesmente, o que temos ali é a velha questão das relações entre homens e mulheres, que vem sendo debatida, há pelo menos 6 mil anos, por todos os escritores. Sempre foi uma vontade de dominação da parte da mulher como do homem. E esse combate pode se manifestar no charme, no amor, na ternura, no ódio e é isso que me faz percorrer caminhos tão diferentes.

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