PUBLICIDADE

Foto do(a) blog

Uma geléia geral a partir do cinema

ô Nóis Aqui... Traveiz

Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Minha colega Beth Néspoli voltou ontem de Porto Alegre entusiasmada com o novo espetáculo do grupo Oi Nóis Aqui Traveiz, a que assistiu no Porto Alegre em Cena. É o mesmo que foi comentado pelo Luix. É sobre Carlos Marighella e a encenação mostra o guerrilheiro como produto de duas culturas, a afro e a italiana. Beth ficou particularmente impressionada com duas partes do espetáculo - a que reproduz a máquina da repressão do regime militar e a caçada a Marighella, inspirada no célebre 'Te entrega, Corisco/Eu não me entrego não', de 'Deus e o Diabo na Terra do Sol', de Glauber Rocha. Ouvindo a Beth contar sobre o carro montado como tanque de guerra e os soldados que avançavam em formação sobre a multidão - o espetáculo era encenado na rua -, entrei numa viagem no tempo. O relato da Beth me ofereceu a madeleine que necessitava. Infelizmente, não estou podendo ver o espetáculo do Oi Nóis, mas, quem sabe, na próxima vez que for a Porto? O meu relato pode até ser uma bobagem, mas foi uma coisa que me marcou e estava lá, soterrada no meu inconsciente. Lá pelo final dos anos 60 ou início dos 70, eu atravessava o Parque da Redenção, uma vasta área verde que é mais ou menos o pulmão de Porto. Ia para a Faculdade de Arquitetura, que fica numa extremidade do parque, ou então para o (então) Cinema Avenida, que também fica ali perto. Era de tarde, e inverno. Frio. É uma zona próxima aos quartéis e naquele tempo, não sei se ainda hoje, o parque era muito usado para treinamento militar. Havia esse sujeito, provavelmente um sem-teto - a lembrança é meio confusa -, que dormia num banco de pedra. Eu estava próximo de passar por ele quando irromperam todos aqueles soldados correndo, e armados, e gritando. O sujeito deu um pulo e, ainda sonado, sem saber o que ocorria, ergueu os braços, sem que ninguém tivesse lhe dito 'Mãos ao alto!' Eu também tomei um susto, a gente ouvia cada história de desaparecimrento. Não houve nada, nem com ele nem comigo, mas eu guardei aquela imagem como uma metáfora do que estava ocorrendo no País. O povo adormecido, despertando brutalmente da sua alienação. O medo, o Exército como instituição intimidadora. Até hoje me lembro, como imagem da fragilidade humana, daquele sujeito anônimo, que eu não sei quem era, levantando os braços e se colocando à mercê daqueles soldados. É uma coisa que me marca até hoje. Sempre achei que aquela situação, aquela imagem, dava filme, mas eu, feliz ou infelizmente, escolhi fazer o meu cinema como jornalista, não como realizador. Talvez a imagem, projetada na tela, fosse impactante para os outros como foi para mim. Relatada, não acredito que seja muito forte, e agora tudo se confunde - já estou delirando e o pobre coitado é preso pelos militares, como no episódio de 'Os Monstros', de Dino Risi (mas isso não ocorreu). Lembram-se do filme? Ugo Tognazzi e Vittorio Gassman, horrendamente vestidos como policiais, dois gorilas, prendem o inimigo público número um, e o sujeito é um pobre Diabo franzino que eles arrastam sem nenhum esforço. Vou mais longe. Não vi ainda o documentário de Evaldo Mocarzel, meu ex-editor no 'Caderno 2', sobre a Brigada Pára-Quedista, tropa de elite do Exército brasileiro. Conversando rapidinho com o Evaldo, na minha festa de aniversário, ele me disse que amigos de esquerda cobraram dele não ter lembrado a atuação do Exército durante a ditadura, mas o tempo agora é outro e um oficial que ele entrevista ainda engatinhava na época do 'Ame-o ou deixe-o'. Gostei bastante do outro documentário sobre o PQD, de Guerlherme Coelho, e acho que ele contextualiza o que poderá ser, ou já está sendo, o projeto do ministro Nelson Jobim de transformare o serviço militar em nivelador republicano. Hoje em dia, só quem serve o Exército é pardo, pobre, de periferia - exagero, claro -, mas é gente que não encontra, fora do Exército, muitas outras formas de integração e ascensão social. É isso ou o tráfico, já que o sonho de virar ídolo no futebol é de quanto? Um em um milhão? Por mais que os indicadores sociais apontem para uma melhora na situão do brasileiro, ainda há muita ezxclusão, muita miséria, essa é a verdade. Para completar, nessa série de devaneios deflagrados, qual madeleine, pelo relato de Beth Néspoli - a crítica dela ao espetáculo 'O Amargo Santo da Purificação', sobre Marighella, está hoje no 'Caderno 2' -, assisti ontem à noite, na TV paga, a um trecho de 'Nascido para Matar', justamente a cena em que o instrutor entra na caserna e cospe todos aqueles palavrões sobre os recrutas reunidos pela primeira vez. Kubrick filma num plano-seqüência vertiginoso, enquanto Lee Ermey cospe seu ódio - 'Aqui não tem racismo, Vocês, brancos, negros, judeus, mexicanos, italianos, são todos m... , mas eu juro que no final do treinamemnto vocês serão homens e máquinas de matar'. Todo Kubrick está presente nessa cena extraordinária. A dissolução da palavra como elo que une e organiza os homens. A desumanização da máquina militar. Acho que é o que fecha o link com aquela imagem que me persegue acho que há uns 40 anos, daquele sujeito, numa tarde, num parque de Porto Alegre...

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.