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Uma geléia geral a partir do cinema

Jorge, 100 anos do bem amado

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Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Já disse aqui que um dos meus livros preferidos é a autobiografia de Pablo Neruda, 'Confesso Que Vivi'. É uma das mais fortes manifestações de poesia em prosa que conheço. Talvez o 'Platero' de Juan Ramón Jiménez lhe seja comparável, mas o que Neruda escreve sobre  o golpe militar, o Chile pós-Allende, a pátria amada e triste, é de uma tragicidade lancinante. Já entrei em livrarias na França, na Itália, nos EUA, no Chile, para reler aquelas páginas em outros idiomas, em busca da sonoridade das palavras que tanto me encanta. Neruda foi um comunista que desfrutou, como poucos, das benesses que o capitalismo pode oferecer. Suas casas em Santiago, na Isla Negra, mas principalmente aquela nas colinas de Valparaíso são templos na Terra. Não há uma vez em que eu vá ao Chile, e já fui muitas, sem querer voltar àquele sítio, olhar aquele mar. E Neruda amou a boa co0mida, os bons vinhos, as belas mulheres. Sim, ele viveu, e com uma consciência, engajado na militância. Jorge Amado foi outro c0munista de carteirinha que enriqueceu, viveu a boa vida, mas tenho a impressão de que ele também não se traiu, nem traiu suas convicções. Jorge, contador de histórias, contou histórias populares, do povo, e por isso ele é tão amado. E há nele uma sensualidade, a construção de um Brasil (exótico? Sonhado?) que atrai os estrangeiros. Agora mesmo, sua editora assinou contrato para (re)lançar seus livros sei lá em quantos países e línguas. Comemorou-se ontem o centenário de nascimento de Jorge Amado. É um  dos autores mais adaptados do Brasil, mas, embora tivesse de fazer uma pesquisa para auferir, tenho a impressão de que não é o 'mais'. O dramaturgo Nelson Rodrigues deve ter ainda mais adaptações, mas Jorge agora mesmo está no ar, na Globo, com 'Gabriela'. Jotabê Medeiros me contou um capítulo da série nesta semana. Malvina (ela?) conversa com as colegiais, diz que o coronel, seu pai, não vai dobrá-la nem fazê-la se casar com quem não quer. A conversa evolui e as moças fogosas discutem como é difícil segurar a virgindade. Uma, a mais liberta, dá sua receita - a porta de trás. Assim mesmo. Na Globo. Walcyr Carrasco está quebrando tabus. Creio que o cinema e a TV, mesmo ao revisitá-lo com frequência, nunca fizeram justiça à arte de contador de histórias de Jorge, e até arrisco por quê. Ele não é, nunca foi, um autor sucinto. É caudaloso. Nem as novelas dão conta disso. Jorge sabia o que contar, como contar. Os filmes, ao reduzir, o amputam. As novelas, ao ampliar, o diluem. Mas é possível guardar belas lembranças de Jorge em movimento, na tela do cinema ou da TV. Dona Florípedes é indissociável do requebro de Sônia Braga, mas também é necessário, para mim, o complemento de Simone cantando 'O Que Será?'. Não admira que o filme de Bruno Barreto tenha sido, por décadas, o recordista de público do País, com mais de 10 milhões de espectadores. Mas eu confesso que nunca esqueci de uma cena na novela 'Tieta'. Não sei nem se ela é do jeito que a visualizo ou se a refiz no imaginário. É a morte do pai de Tieta, que adentra as dunas e é devorado por elas, numa espécie de realismo mágico, como se o autor (Aguinaldo Silva?) estivesse recriando o desfecho de 'Cem Anos de Solidão', quando as folhas do livro reproduzem, ao se fechar, a história da pavorosa solidão da família Buendía. Apesar desses fragmentos de cinema, prefiro o Jorge dos livros. 'Capitães da Areia' foi uma leitura da juventude que carrego comigo. Volto muito àquele trapiche. E 'Terras do Sem Fim'... A mais bela cena é aquela em que a mulher toma coragem de abandonar o marido. O coronel a ama, mas sempre a tratou como objeto. Ela anuncia que vai embora. Ele, choroso e raivoso, pergunta do que vai viver. 'Vou arranjar emprego.' Ele reage, brutal - 'Só se for de puta.' Ela retruca - isso já era, ficando com ele sem amor. O final de 'Terras do Sem Fim' é maravilhoso. A conquista da terra é épica, a exploração capitalista, que vem depois, é que é mesquinha (e indignava o comunista Jorge). Cem anos... De alguma solidão e muita vida.

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