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Uma geléia geral a partir do cinema

E o cara nunca viu 'Oito e Meio'?

Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

CANNES - Sei que muitos de vocês adoram Charlie Kaufman, mas eu, particularmente, acho que há uma diferença entre 'Brilho Eterno de Uma Mente sem Lembranças' e 'Adaptação', e ela pode ser medida pelo aporte que Michel Gondry e Spike Jonze trazem para cada projeto. Não sou muito fã do cara, vocês sabem, mas ainda prefiro o primeiro, que me serve agora para dizer o quanto fiquei escandalizado hoje pela manhã, depois de assistir a 'Synedoche New York', o longa de estréia de Charlie na direção. O filme concorre à Palma de Ouro. A garotada, aqui, acha que já ganhou. Perdoem-me a provocação, mas só se Sean Penn, como presidente do júri, for muito burro. O filme é o 'Oito e Meio' de Charlie Kaufman. Começa realista, tanto quanto pode ser 'realista' um filme por ele escrito (e agora realizado), mas logo a narrativa desestabiliza-se, naquele formato que ele repete, como escritor, para permanecer o mesmo. A 'desconstrução' segue aqui um diretor de teatro abandonado pela mulher e que reasolve montar um espetáculo radical. No fundo, é a própria vida dele, vivida entre os planos da fantasia, da realidade e da imaginação. A figura do diretor faz a ponte com 'Oito e Meio', de Fellini, mas todos esses planos também coexistem em 'Morangos Silvestrees', de Bergman. Alguém - Rodrigo Fonseca, de 'O Globo', que pelo visto gostou do filme - perguntou na coletiva se o filme era mesmo 'Oito e Meio'. Charlie Kaufman nunca viu. Como? Pensei comigo - será que estou ouvindo direito? Ele nunca viu a obra-prima de Fellini? Está tudo explicado. O cinema de Charlie Kaufman me deixa sempre esta impressão de brilho superficial de uma mente sem passado, quer dizer, sem cultura cinematográfica nem vivência humana. Exatamente o contrário de James Gray, que sustenta uma conversação sobre o cinema, sobre a vida e a arte em geral (além de saber tudso sobre Visconti e Fellini). Charlie Kaufman quer falar de tudo em 'Synecdoche' - a arte, a vida, a dor, a morte, a solidão humana. Falta o 'pathos' que só a vivência ou o sofrimento interior dão aos grandes artistas. Esta ausência de pathos é o que também caracteriza o Che de Soderbergh. Sou forçado a concordar com Todd McCarthy, no trecho da crítica dele que começa na capa da edição de hoje de 'Variety' (e prossegue lá dentro, mas eu não continuei a leitura). Todd diz que é respeitável a opção de Soderbergh de não fazer uma cinebiografia 'hollywoodiana', no sentido tradicional, mas acrescenta, e eu estou de acordo, que nada do filme dele sugere como nem por que o Che virou, e continua sendo - apesar do que li outro dia nos comentários, de que se trata de uma farsa da América Latrina, foi isto? -, uma figura icônica e uma lenda. Na verdade, a `humanização' do Che, por Soderbergh, de alguma forma equivale a uma diminuição. É um filme do qual gosto cada vez menos, à medida que me lembro, mas vamos ter tempo de falar sobre isso, depois. Temo que vá ter a mesma sensação com o filme de Charlie Kaufman.

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