Baco nos acordou: o blues sempre esteve no front
Júlio Maria
Baco Exu do Blues não é um bluesman, não no sentido literal, e seu disco Bluesman não é o From The Cradle da música brasileira de 2018. É, sim, um passo de fortalecimento no cozimento estético que a cena rap, ou a cena ‘indie rap underground’ que viveu anos à margem da cena ‘indie rap mainstream’, levou ao fogo há pelo menos dez anos e que começa agora a ser entendida até pelo programa da Fátima Bernardes. Seu discurso só ganha força com o recrudescimento do racismo e seu flow gritado é necessário, por mais que prejudique a própria mensagem no produto final. Ou, talvez, o grito seja a própria mensagem.
BB King, outra música, cita o rei do blues apenas em uma frase. “Você rima como se fosse o BB King solando.” E mais para frente, vem outro texto colocando toda a carga que um dia viria a ser do rock and roll nas costas de seu avô, o blues, o verdadeiro rebelde. “Se você não se enquadra no que se espera, você é um bluesman.” Ike Turner, de quem Tina foi saco de pancadas por anos, morreu jurando que Elvis Presley não fez nada além de surrupiar as sequências de acordes dos negros para deixá-los morrer pobres. BB King, por sua vez, morreu beijando Eric Clapton e todos os guitarristas brancos ingleses dos anos 1970 por darem a uma geração de bluesmen uma dignidade que os Estados Unidos não lhe garantiam mais.
Na árvore genealógica de Baco, o blues e o rap estão sobrepostos. O primeiro libertou o coração dos escravos e o segundo, a consciência. Poder cantar para a mulher amada era mais do que isso naqueles campos do Mississippi do final do século 19. Os escravos, que já traziam dos mercados de carne negra do Mali o blues praticamente formatado em suas escalas de cinco notas (por mais que os norte-americanos apresentem exames de DNA, os norte-africanos já haviam gerado esta criança pelo menos um século antes), começaram, ali, a dominar o mundo. Silencioso, aparentemente inofensivo, saído de violões carcomidos e vozes abafadas, o blues deixou os campos de algodão do Sul, entrou nas igrejas protestantes do Harlem e viajou para os palcos eletrificados de Chicago engravidando homens e mulheres com seu sêmen bíblico que o tornaria pai de tudo. “O rock é blues, o jazz é blues, o funk é blues, o soul é blues”. Ou seja, toda a música pop ocidental de massa, de Jerry Lee Lewis a Justin Bieber, de Beatles a Lady Gaga, todos são blues.
Baco coloca foco também onde não mira e chama atenção para um fato obscuro. Nem só de canções de desamor o blues foi feito. Eles são raros, mas existiram: os bluesmen politizados que colocaram cabeças a prêmio não são lembrados em um ritmo historicamente mais identificado com o próprio significado da palavra blues (nostalgia, deprê, bode). Esses heróis são poucos, mas aqui vai a lista de algumas vozes do blues que, hoje, poderiam ser grandes vozes do rap – JB Lenoir: nascido no Mississippi, falou corajosamente contra a Guerra do Vietnã (Vietnam Blues) e contra o racismo (Alabama Blues); Bessie Smith: em 1928, mandou ver contra o “senhor homem rico” em Poor Man Blues; Leadbelly: em 1937, cantou The Burgeois Blues, o “blues da burguesia”, disparando contra brancos que “sabem como chamar um negro de preto para vê-lo se curvar”. O blues sempre foi rap.
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