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Crítica e crônica

Ah, se a vida começasse agora....

A sala de imprensa do Rock in Rio é meu termômetro da vida. Em 2001, me lembro de ter tido a visão do futuro quando entrei naquela tenda gigante com milhares de computadores que transmitiriam as notícias online pela primeira vez em uma grande cobertura. Eu confesso que estava com medo. Como assim, online? Íamos escrever a matéria e ela seria lida em tempo real? "Isso não vai dar certo", pensei. E me lembro de ter chegado uma notícia aos jornalistas de uma espécie de pá de cal em quem ainda acreditava que o jornalismo de papel era indestrutível: o jornal Notícias Populares acabava de fechar as portas, 20 de janeiro de 2001.

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Foto do author Julio Maria
Por Julio Maria
Atualização:

Ivete e Gisele, a dupla Foto: Estadão

A dinâmica era nova e assustadora. Víamos o Carlinhos Brown correndo para não ser atingido por garrafas d'água, que depois disso seriam banidas de todos os shows, e corríamos para escrever na sala de imprensa. Cássia Eller levantava a blusa mostrando os peitos, outra notícia. Ao contrário das edições de 1985 e 1991, dos quais só me lembro por ter feito com amigos uma versão doméstica de bandas do bairro chamada Rock in Rua, não haveria mais a reflexão que dormia com o jornalista para acordar bem disposta e curtida na razão antes de ganhar as páginas de jornal.

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Vi ali também um ato de civilidade que arrepiou. Por infinitos três minutos, o País fez silêncio por um mundo melhor. Às 19h de 12 de janeiro de 2001, três mil rádios e 522 emissoras de TV simplesmente suspenderam suas programações para pedir humanidade. Nove meses depois, Bin Laden mandaria seus homens entrarem nas Torres Gêmeas com avião e tudo.

Uma década depois e lá estávamos de novo, nós e nossos crachás. Alguns amigos sobreviventes ao tsunami que devastou redações levando grandes profissionais com promessas milionárias para sites megalomaníacos que os cuspiam na orla três ou quatro anos depois se reuniam, desta vez, em uma nova Cidade do Rock. Havia a euforia por ver Guns N' Roses, Metallica, Motorhead e System of a Down, mas uma certa apreensão e a sensação de perda de território para o Maroon 5, que entrava no lugar do rapper Jay-Z (quem gostava de rock mesmo não sabia qual dos dois poderia ser pior) e para todo o exército que vinha fincar a bandeira na lua que havia sido de Neil Young dez anos antes: Katy Perry, Rihanna, Kesha, Cláudia Leitte e Ivete Sangalo. Com Dilma, pela primeira vez uma mulher, assumindo o País das mãos do bem avaliado Lula, não houve nem um segundo de silêncio, apesar de o terrível massacre de Realengo e da decisão do STF de anular a Lei da Ficha Limpa para as eleições apontarem que estávamos bem distantes desse tal de mundo melhor, aonde quer que ele existisse.

E então o Rock in Rio virou bienal e minha memória passa aqui a misturar tudo o que acontece de 2013, 2015 e 2017 em um festival só, até porque o próprio festival passou a adorar a lógica da minha memória como razão de sua existência. Metallica, Iron Maiden, Sepultura, Bon Jovi... Em 2013, veio o Bruce Springsteen avassalador com sua E Street Band, disso me recordo. Ah, e de uma noite de 2015 em que fizeram dobradinha Rod Stewart e Elton John, com uma Rocket Man de fazer os jornalistas saírem da sala de imprensa e correrem para a frente do palco, claro que muito disfarçadamente.

Dezesseis anos depois de cobrir meu primeiro Rock in Rio, sentado na sala de imprensa sob um ar condicionado siberiano para consolidar o texto que meus amigos enviam do campo de batalhas, assisto do telão ao show da Ivete Sangalo e de Fernanda Abreu sem a mínima vontade de estar lá fora. Gisele Bündchen fez agora há pouco o discurso do "por um mundo melhor" de mãos dadas com Ivete Sangalo, que depois cantou Imagine. O grande show da noite será do Maroon 5, que será também o grande show da noite de amanhã. Se o mundo começasse agora, eu abriria um restaurante.

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Sala de imprensa da nova Cidade do Rock Foto: Estadão
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