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Música clássica... E um pouco de tudo

Opinião|Modernismo francês, à brasileira

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"Qualquer um pode dizer o que bem entender do Brasil, mas não tem como negar que se trata de um desses países pungentes, que impregnam a alma e a deixam com um certo tom, um vezo, um tempero de que ela nunca mais conseguirá se ver livre." A anotação faz parte das memórias do poeta e diplomata francês Paul Claudel, mas bem poderia ter sido escrita por um jovem músico de 25 anos que integrou a comitiva do então chefe da representação no Brasil. Darius Milhaud chegou ao País em 1917, atuou como verdadeiro adido cultural e, dois anos mais tarde, ao retornar à Europa, engrossaria fileiras do modernismo francês.

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O efeito da passagem pelo Brasil - e a maneira como se manifestaria em sua obra - é o tema do novo trabalho do musicólogo Manoel Corrêa do Lago, organizador de O Boi no Telhado: Darius Milhaud e a Música Brasileira no Modernismo Francês, reunião de ensaios sobre o compositor. "No Brasil, ele sofreria alguns impactos que seriam fundamentais para sua carreira: o convívio diário com a personalidade mercurial de Paul Claudel, o deslumbramento com o Rio de Janeiro e com o espetáculo da natureza tropical, o contato com o establishment musical carioca que o surpreende pelo alto grau de atualização em relação à música moderna francesa, a revelação do carnaval e da música popular dos compositores de tangos, maxixes, sambas e cateretês", diz o musicólogo.

A percepção da produção musical brasileira das primeiras décadas do século 20 costuma girar em torno da figura dominante de Heitor Villa-Lobos, filtro por meio do qual ela costuma ser analisada e estudada. O trabalho de Corrêa do Lago segue por outro caminho. Em O Círculo Veloso-Guerra e Darius Milhaud no Brasil, seu livro anterior, ele recuperou personagens esquecidos - o professor e pianista Godofredo Leão Veloso, sua filha, a pianista e compositora Maria Virgínia Veloso Guerra, e seu marido, o compositor Oswaldo Guerra -, da mesma forma que redescobriu autores como Alberto Nepomuceno, Henrique Oswald e Luciano Gallet e a importância que tiveram como elos na transição do romantismo para a música moderna.

Agora, ele se dedica à investigação mais específica da obra de Milhaud - e o faz a partir de uma reunião de ensaios que investigam sua biografia, o período vivido no Brasil e a presença da música brasileira em obras como o balé O Boi no Telhado, que estrearia em 1920 na França, com coreografia de Jean Cocteau. O título da peça vem de um tango de um tal Zé Boiadêro, sucesso no carnaval de 1918. A partitura está repleta de temas de importantes compositores brasileiros da época - e em um dos ensaios mais importantes do livro, a musicóloga americana Daniella Thompson cita nominalmente "os parceiros não creditados de Milhaud, suas composições originais e seus meios culturais".

Ao trabalho de Daniella, segue-se um ensaio no qual Corrêa do Lago faz a análise musical da peça e desfaz o mito da influência indistinta do folclore brasileiro na obra de Milhaud, divulgada pelo próprio autor, mostrando que as peças que o influenciaram tinham autoria e estavam todas disponíveis e editadas.

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O livro, assim, é tanto sobre Milhaud quanto sobre a cena musical brasileira - e traz ainda textos de Anaïs Féchet, Paul Claudel, Jean Cocteau, Aloysio de Alencar Pinto e Vincenzo Caporaletti, além de um CD com duas gravações de O Boi no Telhado: uma com a Orquestra de Lyon e outra com adaptação de Paulo Aragão para conjunto de choro.

Opinião por João Luiz Sampaio

É jornalista e crítico musical, autor de "Ópera à Brasileira", "Antônio Meneses: Arquitetura da Emoção" e "Guiomar Novas do Brasil", entre outros livros; foi editor - assistente dos suplementos "Cultura" e "Sabático" e do "Caderno 2"

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