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Opinião|"La Bohème" em Belo Horizonte: uma leitura

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BELO HORIZONTE - Ao adaptar as Cenas da Vida Boêmia, de Henry Merger, visão romântica da juventude parisiense no século 19, o compositor Giacomo Puccini eliminou o caráter fragmentado da ação, transformou a história do poeta Rodolfo e da florista Mimi em fio condutor e fez da paixão o principal personagem da ópera. Do toque acidental das mãos no primeiro ato, quando os amantes se conhecem, às inseguranças pessoais que levam à separação do casal, é o amor e sua impossibilidade que dão o tom, ilustrados por uma escrita que, além da beleza melódica e da riqueza na orquestração, é teatro puro. La Bohème subiu ao palco do Palácio das Artes de Belo Horizonte, no final de semana, em uma montagem problemática, que deixa em segundo plano a delicadeza e a intensidade da criação de Puccini. Presa entre a sugestão e um naturalismo pueril, a produção de Luiz Aguiar e Henrique Passini não empolga, apesar de algumas ideias interessantes - como a luz do sol que invade a paisagem de inverno no primeiro ato, durante a ária de Mimi. A montagem falha ao lidar com alguns desafios que a Bohème coloca a qualquer encenador. No segundo ato, por exemplo, a cena em praça pública leva a um amontoado de elementos que não dialogam entre si, com figurinos sem coerência e um trabalho de luz superficial, levando a um caos cênico no qual é difícil até mesmo identificar os protagonistas. O trabalho de atores também deixa a desejar, com caracterização superficial de personagens como Musetta, uma mulher fácil e leviana na leitura dos diretores, sem prestar atenção ao fato de que, ao retratar sua relação conturbada e apaixonada com o pintor Marcello, Puccini está criando na verdade um contraponto à tragédia que, desde o primeiro momento, marca a relação de Mimi com Rodolfo. Porém, o equívoco mais grave da montagem, em um teatro grande e de acústica complicada como o Palácio das Artes, é a aposta em cenários que deixam o fundo do palco aberto, dificultando a projeção dos cantores e tornando difícil avaliar, por exemplo, o desempenho de solistas como o barítono paulista Pedro Ometto, cenicamente convincente como Schaunard, ou do baixo uruguaio Ariel Cazes, no papel de Colline. A decisão também ajudou a tornar problemática a atuação do tenor carioca Marcos Paulo como Rodolfo. A dificuldade de projeção o faz forçar a voz, levando a efeitos desagradáveis, principalmente nas regiões mais agudas da voz, e a um desempenho apagado, sem os matizes que reforçariam o drama do personagem. Como Musetta, a soprano mineira Fabíola Protzner demonstrou um timbre belo e farto, mas sua atuação ganharia com maior refinamento na interpretação. Vocalmente, os destaques positivos foram o barítono brasiliense Leonardo Neiva, como Marcello, e a soprano venezuelana Mariana Ortiz, como Mimi. Desde a ária do primeiro ato, ela ofereceu uma leitura contrastada e musical, preocupada com a beleza das linhas de canto, que constrói de modo bastante hábil. Não por acaso, o melhor momento da récita da noite de sábado tenha sido justamente o dueto entre os dois no terceiro ato, de carga dramática forte, o que levou inclusive ao melhor desempenho da Filarmônica de Minas Gerais, sob a regência do maestro Roberto Tibiriçá. Em geral, porém, a atuação dos músicos foi apenas correta, em uma leitura que sente falta, em momentos cruciais da ação, de tônus dramático. Impagável foi a atuação do veterano barítono Rio Novello como Benoit e Alcindoro. Ao convidá-lo, o maestro Tibiriçá prestou verdadeira homenagem não apenas a um grande cantor mas também a toda uma geração de solistas que ajudaram a fazer a história da ópera brasileira.

Opinião por João Luiz Sampaio

É jornalista e crítico musical, autor de "Ópera à Brasileira", "Antônio Meneses: Arquitetura da Emoção" e "Guiomar Novas do Brasil", entre outros livros; foi editor - assistente dos suplementos "Cultura" e "Sabático" e do "Caderno 2"

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