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Música clássica... E um pouco de tudo

Opinião|Ensaio

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Foto do author João Luiz Sampaio
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 Foto: Estadão

"Não, não, não." O maestro abaixa os braços e, com o gesto, interrompe os violinos durante o ensaio na manhã de terça-feira na Sala São Paulo. "Não façam essa passagem convencionalmente, como se estivessem em um conservatório." São 12 notas, carregadas de tensão e desespero, divididas entre os primeiros e segundos violinos. "Olhem para mim, sigam o meu braço." As notas voltam a soar; violoncelos, contrabaixos e violas se juntam à massa sonora. E os braços do maestro, então, se abrem. "É como se uma janela se abrisse", diz ele, sem que a execução se interrompa. "Preciso que vocês me ajudem a empurrar essa janela." São apenas três compassos - e o fato de que em poucas notas possam existir tantos significados é testemunha da riqueza expressiva da obra e de seu compositor. Ao longo de 2011, se lembram os 100 anos da morte do austríaco Gustav Mahler; e poucas homenagens são tão especiais - e complicadas - como a execução de sua Sinfonia n.º 9, atração dos concertos desta semana da Osesp, de hoje a sábado, com regência do maestro Isaac Karabtchevsky, que hoje a partir das 19h30 também participa de conversa com o público na série Música na Cabeça. "A questão é que, em especial no adágio que encerra a sinfonia, você tem que chorar cada nota", diz o maestro, pouco depois, durante o intervalo para o almoço. "Ele é o movimento mais curto em notas, mas o mais longo em intensidade", explica. Karabtchevsky, aos 76 anos, é nosso grande especialista na obra do compositor; encontra rival talvez apenas no trabalho de John Neschling, último a fazer a peça com a orquestra, em 2009. No começo do mês, fez uma elogiadíssima Sinfonia n.º 2 do compositor com a Sinfônica de Heliópolis. Mahler, por sua vez, é o novo Beethoven - ao menos no que diz respeito à maneira como orquestras usam a interpretação de suas sinfonias como atestado de maturidade. Por tudo isso, os concertos desta semana da Osesp são aguardados com expectativa. "Mais, mais, mais." De volta ao palco da sala, o berro do maestro pede intensidade maior na interpretação. "Cada nota é como a batida do coração do compositor, um coração, ele acabara de descobrir, com um grave problema, que o levaria à morte." A música recomeça mas, em seguida, é interrompida. "Vocês precisam ficar arrepiados quando tocam, senão não faz sentido."

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O ensaio começa às 10 da manhã de terça-feira na Sala São Paulo. No palco, o inspetor pede silêncio. E o spalla Claudio Cruz dá ordem para que comece a afinação. Logo em seguida, chega, sorridente, o maestro Isaac Karabtchevsky. Abre a partitura, olha para os músicos. "Do começo." A primeira interrupção vem 15 minutos depois, uma pequena correção no andamento. "Um, dois, três", repete o maestro; pede mais expressividade aos violoncelos, mais força aos tímpanos; corrige uma sequência das flautas. As palavras são poucas - e precisas. E, no fim da manhã, a orquestra já repassou praticamente toda a sinfonia, deixando o palco, para o almoço, no meio do adágio final. À tarde, é a ele que maestro e músicos retornam. "Não há muito o que dizer, não é preciso falar, vocês sabem disso", recomeça Karabtchevsky. "Mas vou pedir apenas que se lembrem: nesse movimento, tudo é reflexo da vizinhança da morte. Ouçam as batidas do coração de Mahler, leiam a música como reflexo de sua condição física", completa, antes da música recomeçar. Depois do adágio, o ensaio volta ao começo da sinfonia. Hora de corrigir passagens específicas. "No final das contas, o adágio é o pedaço mais trabalhoso, no qual acabamos gastando mais tempo. É um movimento dilacerado, até porque Mahler está dilacerado nesse ponto de sua vida. A proximidade da morte dá um peso grande à música. E, ao mesmo tempo, há uma certa placidez desconcertante", diz Karabtchevsky ao Estado. "É essa a janela que se abre, essa visão apaziguadora em meio à dor. Já vi muitos colegas interpretando essa passagem de acordo com o manual." Ele canta as notas. "Mas, quando você ouve com cuidado, fica difícil conceber esse tipo de leitura. No quarto movimento da Nona, você precisa chorar a cada nota." Karabtchevsky está falando de passagens como os primeiros compassos do adágio, em que pede que os músicos ajam livremente perante o que está escrito na partitura. E é em momentos como esse que se dá o diálogo do compositor com o intérprete.

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 Foto: Estadão

Limites do som - e da própria vida Em 1908, recluso na cabana à beira do lago de sua propriedade em Toblach, às voltas com o início da composição de sua Nona Sinfonia, Gustav Mahler escrevia a seu amigo Bruno Walter: "Se quero recobrar o controle sobre mim mesmo, preciso me entregar novamente aos horrores da solidão. Perdi toda clareza e tranquilidade. E agora que estou perante o nada, no fim da vida me descubro um iniciante, devendo uma vez mais aprender a caminhar". Mahler (1860-1911) buscou definir em sua obra um conceito de indivíduo e de relação com o mundo, isso durante a passagem do século 19 para o 20, período marcado por intensas transformações sociais, políticas, no campo das ideias - e, acima de tudo, por um ser humano novo, descortinado pela psicanálise. A Nona faz parte de um momento particularmente complicado de sua vida. Poucos anos antes, ele perdera a filha de 4 anos e descobrira que sofria de um problema incurável no coração, que lhe tiraria a vida. Além disso, depois de anos à frente da Ópera de Viena, havia deixado o cargo, em meio a uma disputa política. Não por acaso, a sinfonia incorpora muitas das obsessões do compositor - morte, desejo, natureza, fim, recomeço. Tudo isso em diálogo com as questões estéticas da época. Escrito em um período de transição entre a tradição romântica e a música moderna, o primeiro movimento, por exemplo, brinca com convenções ao mesmo tempo que sugere novos caminhos para a escrita musical. Sensação semelhante, ainda que por caminhos distintos, provoca o adágio final. O sentimento de urgência nas cordas sugere que a profundidade emocional está ligada indissociavelmente à linguagem formal; e parece nos levar aos limites máximos da melodia: ao fim do som, da própria música; e da vida.

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Em tempo. Uma correção com relação ao material publicado na versão impressa do Caderno 2 de quinta-feira: os ingressos para o concerto da série de Câmara, no domingo, às 17 horas na Sala São Paulo, quando músicos da Osesp vão estrear um concerto de Nailor de Azevedo e uma versão para cordas do Quarteto nº 2 de Janácek, custam de R$ 49 a R$ 56.

Opinião por João Luiz Sampaio

É jornalista e crítico musical, autor de "Ópera à Brasileira", "Antônio Meneses: Arquitetura da Emoção" e "Guiomar Novas do Brasil", entre outros livros; foi editor - assistente dos suplementos "Cultura" e "Sabático" e do "Caderno 2"

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