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Música clássica... E um pouco de tudo

Opinião|A orquestra do Reich

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Foto do author João Luiz Sampaio
Atualização:

Em 2007, a Filarmônica de Berlim completou 125 anos e, em uma atitude totalmente inesperada, resolveu comemorar a data com a abertura dos arquivos de uma das passagens mais controversas de sua história, a atuação durante os anos do nazismo. Na passagem das décadas de 30 para 40, foi a única orquestra que se manteve atuante na Alemanha, sem interrupções. Adotada pelo ministério de Goebbels, que cuidava da propaganda do regime, viajou a Europa durante a guerra. Seus músicos tinham privilégios como a isenção do serviço militar ou a exclusão das milícias, tropa criada quando Berlim foi invadida.

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Não é de hoje que se discute a relação do maestro Wilhelm Furtwängler com o nazismo. No que diz respeito à música, o regime exaltava a obra de Beethoven, Wagner, Brahms ou Bruckner como símbolo da alta cultura alemã. Furtwängler foi o grande intérprete de sua época desses compositores. O assunto é controverso. No início dos anos 30, o maestro deu declarações públicas contra o nazismo; nunca se filiou ao partido; músicos contam que se recusava a saudar com o "Heil Hitler!" a fotografia do führer colocada na sala dos músicos da filarmônica; há inclusive um vídeo no qual, após um concerto em homenagem ao aniversário do führer, o maestro limpa discretamente as mãos com um lenço após ser cumprimentado por Goebbels. Ainda assim, Furtwängler comandou a orquestra em diversos concertos oficiais do regime e só deixou a Alemanha em 1944, seguindo conselho de Albert Speer e exilando-se na Suíça.

Ao passar pelo comitê de desnazificação, Furtwängler disse aos oficiais americanos que não deixou o país por se "sentir responsável pela música alemã". "Era minha responsabilidade sobreviver à crise. A preocupação sobre o uso propagandístico de minha arte precisou dar espaço a uma preocupação maior: a preservação da música alemã, da possibilidade dessa música ser apresentada ao povo alemão por músicos alemães. Quem não viveu aqui esses anos não pode julgar como era nossa situação." Furtwängler foi inocentado. Em "Taking Sides", filme no qual narra a passagem do maestro pelo comitê, o diretor Istvan Szabo sugere que sua absolvição estava diretamente ligada ao desejo russo de tê-lo como diretor da Staatsoper, a casa de óperas da Berlim Oriental - o que nunca ocorreu.

A abertura dos arquivos da orquestra, no entanto, tirou o foco do maestro e pela primeira vez o colocou na atuação dos músicos, tema do documentário "A Orquestra do Reich", de Enrique Sánchez Lansch, lançado em DVD pela Arthaus. O filme traz vídeos históricos raríssimos e revela documentos preciosos, que transformam o que era boato ou dúvida em realidade - há uma carta em que a direção da orquestra se compromete a limpar dos seus quadros músicos judeus; em outra, fica provado que, se não fosse pela ajuda dada pelo ministério de Goebbels, a orquestra teria que fechar suas portas por falta de verbas. Havia na filarmônica apenas cinco músicos filiados ao Partido Nazista. E a leitura de seus diários é também perturbadora, com longas argumentações sobre o papel político da música em tempos de guerra e o orgulho de interpretar a "Nona Sinfonia" de Beethoven no aniversário do führer.

O mais impressionante, porém, está nos depoimentos dos únicos dois sobreviventes entre os músicos daquela época, o violinista Johannes Bastiaan e o contrabaixista Erich Hartmann. Suas versões para o que aconteceu nem sempre batem. Bastiaan afirma, por exemplo, que após passar para o controle do Ministério do Povo e da Propaganda, cinco músicos judeus foram forçados a deixar o cargo; já Hartamnn credita a saída deles a busca por novas possibilidades profissionais. Segundo Bastiaan, a política não participava do dia-a-dia dos músicos e que, mesmo em conversas com os artistas integrantes do partido, era possível demonstrar discordância. Ele conta ainda que sentia vergonha quanto a orquestra tocava para soldados feridos. "Ali estávamos nós, seguros, recebendo bem, e aqueles homens se machucavam em combate. Ao mesmo tempo, fazer música parecia algo nobre, que podia consolar o sofrimento." Hartmann é mais direto. "Estávamos na melhor orquestra, com o melhor maestro, o que nos preocupava era o prazer de fazer música."

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Os músicos, em última análise, defendem que estavam apenas fazendo seus trabalhos, sem saber exatamente a medida do que acontecia na Alemanha e no mundo. Eram tempos atípicos, de exceção. E procurava-se apenas a melhor maneira de seguir vivendo. Isso nos leva de volta à discussão sobre responsabilidades individuais. A Segunda Guerra foi um episódio negro da história mundial e argumentos como o de Hartmann, à luz de tudo o que hoje sabemos sobre o que aconteceu, parecem ingênuos, na melhor das hipóteses, e geram repúdio. No entanto, não seria mais interessante, em vez de apontar dedos, aceitar de vez que o processo histórico não é feito de heróis e vilões? Esse é a grande proposta do filme - entender a atuação daqueles músicos e daquela orquestra e, a partir deles, falar sobre o ser humano e suas contradições. Mais do que isso, de maneira indireta, o documentário nos traz de volta a nosso tempo. Não vivemos sob a guerra, regimes autoritários são exceções, mas, ainda assim, onde ficam nossas responsabilidades individuais em um mundo repleto de problemas de ordem social, em que o autoritarismo se perpetua das relações pessoais à discussão política? Ao abrir seus arquivos, a Filarmônica expôs ao mundo a possibilidade do debate sobre um dos mais delicados aspectos da relação entre arte e sociedade. Entender o passado às vezes é uma boa maneira de pensar o presente. E transformá-lo.

Opinião por João Luiz Sampaio

É jornalista e crítico musical, autor de "Ópera à Brasileira", "Antônio Meneses: Arquitetura da Emoção" e "Guiomar Novas do Brasil", entre outros livros; foi editor - assistente dos suplementos "Cultura" e "Sabático" e do "Caderno 2"

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