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Christiane Jatahy oferece uma poderosa 'Odisseia' particular

'Ítaca – Nossa Odisseia I' causa no espectador efeito de se questionar sobre questões profundas sem deixar de desfrutar de uma potente experiência estética

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Por Guilherme Sobota
Atualização:

Em uma cena de Ítaca - Nossa Odisseia I, de Christiane Jatahy, uma das atrizes que interpreta Penélope (são três, e também são três os Ulisses) deita-se no chão e chora de saudade ao som de Maria Bethânia -- As Canções Que Você Fez Pra Mim. Do outro lado e ao mesmo tempo -- o palco é dividido, cada parte da plateia fica de um lado (eventualmente, a cortina sobe e uma arena se forma, mas falamos disso depois) -- um ator lê, em francês, o relato de um refugiado no mar, uma Odisseia própria e absolutamente real.

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A Odisseia é uma grande especulação sobre o retorno e um convite à narração (ou "uma investigação de caráter intelectual ou espiritual", como define o Houaiss), mas a adaptação de Christiane Jatahy propõe conflitos (quase insolúveis) o tempo todo. Como ela mesma tenta definir, a odisseia de Ulisses (Odisseu) lembra a crise dos refugiados; os pretendentes de Penélope em Ítaca, negados por ela, têm sede de poder (numa alusão ao Brasil contemporâneo).

No fim, a guerra não acabou, a morte está sempre presente e o amor é impossível.

Cena do espetáculo Ítaca - Nossa Odisseia I, de Christiane Jatahy. Foto: Victor Tonelli

Mesmo quando o amor finalmente aparece -- e ele aparece no final da Odisseia --, existe uma barreira entre os amantes (a divisão central do palco, uma cortina de fios que faz até chover) e eles quase nunca se encostam, a não ser em um contexto violento.

Em outra cena, um dos homens arrasta a atriz Julia Bernat pela "piscina" que se forma no centro da arena, prende seus pés e diz, com a câmera de vídeo na mão apontada para ela: canta, minha sereia. Quando ela começa You don't know me, é possível colocar em cheque a ideia de Kafka de que mais terrível do que o canto da sereia seria o seu silêncio. Naquele momento, é impensável imaginar algo mais visceral.

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Isso não é novidade para quem já viu outras peças da diretora, mas para neófitos é difícil dizer que o uso do vídeo é qualquer coisa menos que impressionante -- os atores passam a empunhar câmeras e dirigir cenas, projetadas ao vivo no centro da arena. Porque o tipo de pergunta que (mais) essa camada suscita é: o que está acontecendo? isso faz parte da atuação? isso faz parte da representação? teatro, performance, cinema?

Porque no fim, se uma peça de arte faz isso para ela mesma, o eco inevitável no leitor/espectador atento é se fazer perguntas parecidas: se isso aqui ultrapassa uma representação comum, é possível que eles estejam falando sobre mim? quantas vezes eu sou ulisses ou eu fui penélope? Os resultados dessa exploração, me parecem, podem ser saudáveis ou não, mas sempre serão poderosos.

A peça tem ainda outras camadas de incomunicabilidade: os atores (dois franceses e um belga) só usam o português como pilhéria. As mulheres, brasileiras, falam português com o público mas, sob pedidos insistentes dos atores/personagens ("eu não te entendo" é a frase mais falada da peça toda), elas se esforçam e mudam para o francês.

Numa perspectiva feminista, essa é uma pinçada certeira: para fazer a mesma coisa, mulheres devem trabalhar em dobro.

É impressionante notar, ainda, como a escolha da diretora em dividir especialmente Penélope entre três atrizes (Bernat, Isabel Teixeira e Stella Rabello) ecoa os múltiplos papéis narrativos que a personagem detém na história original: aqui mais representados como a "viúva" que controla o ambiente hostil dos pretendentes (às vezes sendo vítima deles); e a esposa fiel que usa o truque da mortalha para adiar seu destino amargo.

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As legendas projetadas servem como outro tipo de marcação involuntária e uma espécie de lembrete: o texto orgânico que estamos ouvindo (fruto de atuações seguras), é e sempre foi apenas um artifício.

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No terceiro ato da peça, aquele em que Odisseu viaja pelos mares (representados com uma enorme quantidade de água no centro do palco; água como uma possível representação, também, da liquidez de que somos feitos; Tenho Sede, disse Gil, embora a estrela musical aqui seja Caetano) e chega a Ítaca, há a discussão de que se ele é de fato um "herói".

Na Odisseia de Homero, talvez o episódio que melhor ilustre esse debate é o do ciclope Polifemo, quando, depois de ser capturado e assistir impotente à morte de seis companheiros, Ulisses tem a ideia de se amarrar em um carneiro para escapar da caverna do monstro, se denominando "Ninguém" para enganá-lo e cegá-lo. Quando o personagem escapa, ele revela seu verdadeiro nome (Ulisses), num ato (fútil) de defesa da própria honra. O problema é que sabendo seu nome o ciclope consegue pedir para Poseidon amaldiçoar a volta de Ulisses para Ítaca.

Assistindo na peça àqueles três homens absolutamente contemporâneos, atônitos, ouvirem e reouvirem a frase "você não é herói"... as coisas ficam bem claras. Esse mito acabou há 2,8 mil anos. Ainda estamos entendendo (ou numa alternativa: ainda não entendemos).

Falando sobre a Odisseia, o poema, o professor da USP Christian Werner oferece uma leitura que não por acaso proporciona uma visão precisa para dentro da peça de Jatahy: "as intersecções entre o que se vê e o que não se vê, e entre o que é dito e o que não é dito, produzem constantes interrogações acerca da caracterização de suas principais personagens, em especial, de Penélope e Odisseu. O poema [a peça?] é fruto de um truque do seu narrador: a construção de um texto que não deixa de ser aberto mesmo ao recebermos, satisfeitos, um final feliz para o casal de Ítaca".

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Ítaca - Nossa Odisseia I, produção do Odéon-Théâtre de l'Europe, do qual Christiane é artista associada, ficou em curta temporada em São Paulo, mas 2019 deve ver uma continuação, Nova Ítaca, estrear primeiro aqui. A expectativa é de uma nova experiência estética inesquecível.

Christiane Jatahy, diretora do espetáculo 'Ítaca - Nossa Odisseia I'. Foto: Valeria Gonçalvez/Estadão
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