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Flavia Guerra

Quando a saúde chama! Ou de como sobrevive um motoboy brasileiro em Londres

Londres

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Por Flavia Guerra
Atualização:

Prólogo - Ou lembrança àqueles que insistem em resumir a visão deste blog em apenas um dos tantos posts que ele contem. Nem tanto ao mar. Nem tanto à terra. Quem pensa que a minha visão seja a dourada pílula inglesa acompanhada do chá-das-cinco não deve, no mínimo, ter lido os posts anteriores. Mas eu realmente acredito que os ingleses tenham muito a ensinar aos brasileiros. Assim como também acredito que os brasileiros tenham muito a ensinar aos ingleses. A graça de tudo está na moderação. Já que é assim, resolvi fazer uma pequena grande lista de pequenas-grandes lições que os ingleses têm de bom. Isso não significa que não haja quem faça melhor ou igual. Simplesmente, como o título deste blog já sugere, seus temas em geral se atêm à Terra da Rainha.

 Foto: Estadão

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Lição 1 - Saúde

Uma das lições, por exemplo, o sistema de saúde. Antes de mais nada, vale dizer que acredito que o Brasil avança a passos largos. E não deve sofrer de complexo de vira-lata nenhum. O que mais se fala por aqui é sobre o quanto o Brasil cresce, prospera, está crescendo, está na moda etc... Mas, como bem observou uma leitora, e os índices de condições básicas que elevam o nível de vida de todo país? Como vai a saúde, a educação, os níveis de diferença de renda no Brasil e na Inglaterra? Então, a saúde na Inglaterra... Muitos dizem que o NHS (National Health System) está em colapso. Outros com razão alegam que o tratamento dado aos pacientes por parte dos médicos é frio e seco como as macas de alumínio. Quase todos brasileiros dizem que os médicos dos GPs (o centros de General Practice, uma clínica de atendimento geral que poderia ser comparado aos postos de saúde brasileiros) usualmente só receitam paracetamol e mandam os doentes para casa. Quem ousa negar tais fatos? Mas, o que vi neste último ano em que freqüentei mais os corredores de hospitais que os túneis do metrô londrino, foi uma face interessante de como funciona o atendimento em Londres, seja formal quanto informal.

Cinco meses atrás, o personagem principal do documentário que estou agora editando, sofreu um acidente. Karl Max (sim, sem o R) é o nome dele. Ironia pouca do destino, é bobagem... Goiano e sem falar bem o inglês, ele era um dos centenas de motoboys brasileiros que se arriscam ilegalmente todos os dias nas ruas da Inglaterra para entregar os documentos (legais) que fazem mover uma das maiores economias do mundo. Max se acidentou numa tarde de maio. Quase morreu, quase perdeu o pé. Quase ficou inválido. Chegou ao hospital quase morrendo. Tudo que conseguia processar era: 'Talvez vamos ter de cortar seu pé". Bateu o desespero. Max sozinho, sem saber se explicar em inglês, sem poder ligar para ninguém, passou a noite na maca gelada do Whitechappel Hospital. De seu nome, mal grafado, à sua situação legal, passando pelo seu pé esquerdo, tudo estava errado. Os funcionários do hospital poderiam ter alegado, diante da obviedade da situação, que Max era ilegal e, portanto, não teria direito a tratamento. Que nada. Max foi tratado do começo ao fim dos longos 44 dias em que passou internado como um autêntico inglês. Tão autêntico quanto Roy, o inglês de Kent, que dividia com ele uma das macas da 'ala dos estropiados' como eu a definia. Nos outros dois leitos, um russo desabrigado comemorou seu aniversário com um bolo improvisado, pago pelo ocupante do outro leito: um mafioso marroquino que recebia visitas regulares de seus 'funcionários', que lhe entregavam sumas impressionantes de libras de dar gosto de ver.

Com algumas destas libras, o marroquino pagava a TV (que não é de graça) do leito do Max, para que ele se distraísse nas tantas horas de solidão hospitalar. Enquanto isso, Roy ensinava o Max a falar direito com as enfermeiras descendentes de famílias da Índia, do Paquistão, do Iraque, de Bangladesh e, veja só, até da Inglaterra!

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Os 44 dias serviram para o Max parar de falar que médico inglês "só taca paracetamol na gente". Serviu também para ele melhorar o parco inglês que falava. Serviu para aprender que, por mais ilegal que fosse, médico inglês nenhum iria largá-lo no corredor ou chamar o Home Office (o tão temido caça-ilegais) antes de ter a certeza absoluta que o pé esquerdo do Max estava em condições de passar para a fase da fisioterapia e, em seguida, para a cirurgia plástica.

Enquanto isso, a mulher do Max, também ilegal, fazia o pré-natal em um outro hospital da cidade. Fui a quase todas as consultas do pré-natal com ela. Traduzi linha por linha do que as midwives (algo que poderia ser traduzido como uma parteira, mas que é de fato uma enfermeira especializada) diziam para ela. Do fato dela ter de tomar mais ferro (que era fornecido gratuitamente) ao fato dela ter de fazer parto normal (porque na Inglaterra parto cesárea não é banal e só é feito em último, mas último caso mesmo). Passando até pelo fato das enfermeiras se recusarem a fazer mais do que os quatro necessários ultrassons durante os nove meses. "Não deu para ver o sexo do bebê direito? Espere a surpresa. Compre tudo branco e verde e vai ser feliz." Foi assim que a midwife, muito carinhosamente, com uma frieza que uma enfermeira do Brasil nunca falaria, explicou porque não iria mais fazer ultrassom nenhum na barriga da mulher do Max. "Se o marido dela não está contente com uma menina, o problema é dele." Eu achei uma grosseria inglesa das maiores ouvir aquilo. Afinal, era só para comprar roupinhas da cor certa. Mas, depois de uma olhada melhor, e de perceber que 90% da grávidas que ali faziam o pré-natal são em geral de famílias muçulmanas, chinesas e do Leste Europeu, entendi a lição.

O tratamento continua sendo sim frio e impessoal. Como brasileira, continuo achando estranho que o médico em geral só apareça na primeira consulta e depois de o bebê nascer. Mais estranho ainda que todo mundo sabe que todo mundo sabe que há milhares de ilegais trabalhando, sendo tratados, parindo, gastando suas libras, pagando impostos e contribuindo para a economia inglesa. Como numa república dos acordos tácitos, todo mundo sabe que o Rei (ou a Rainha) muitas vezes está nu. Mas ninguém fala. Muitas vezes para o mal. Outras tantas para o bem.

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