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Wolfianas n° 2: Racismo, supremacia branca e neonazismo: o passado bate à porta

O que aconteceu em Charlottesville nos dias 11 e 12 de agosto foi isto: a História resolveu bater à porta e trouxe consigo três desagradáveis fantasmas do passado: o racismo, o supremacismo branco e o nazismo. E quando esses personagens entram em cena, não é possível usar o argumento do "mas e a violência deles?"

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Por Estado da Arte
Atualização:

Por Eduardo Wolf

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Uma das cenas mais comoventes do documentário Jazz, do diretor Ken Burns, é protagonizada pelo pianista Dave Brubeck. Os fãs do pianista conhecem bem a história do jovem que, durante a Segunda Guerra Mundial, servindo ao exército americano, organizou a The Wolfpack, considerada uma das primeiras bandas interraciais do exército. Seu talento foi imediatamente reconhecido, e Dave e seus companheiros de banda se apresentaram em diversos pontos da Europa ao longo de 1944 e 1945. A música, não é exagero dizer, salvou-lhe a vida.

Dave regressou a salvo para os Estados Unidos em 1945. No documentário de Burns, o pianista californiano relembra como foi retornar com sua unidade - não apenas os membros da banda - dos campos de batalha da Segunda Guerra Mundial, onde foram lutar contra a tirania e o totalitarismo nazista, e chegar na terra da liberdade.

É difícil não se emocionar com seu depoimento: no seu primeiro dia de volta, no Texas, os rapazes se dirigem a um restaurante para fazer uma refeição. Seguindo estritamente as leis racistas da época, os negros não puderam entrar no estabelecimento. A eles foi oferecida uma refeição na porta da cozinha. Um dos rapazes negros, chorando, recusa-se a comer e comenta, nas palavras de Brubeck: "Depois de tudo o que passei, no meu primeiro dia de volta, eu não posso nem mesmo me sentar com vocês para comer".

Quando li sobre a marcha de supremacistas brancos, adeptos da Ku Klux Klan e neonazistas ocorrida em Charlottesville, na Virginia, nos últimos dias 11 e 12 de agosto, uma das primeiras imagens que me veio à mente foi a desse depoimento de Dave Brubeck. Seriam suas palavras capazes de nos oferecer algum consolo, algum conforto ou algum direcionamento moral em meio ao escândalo que víamos nas ruas?

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Escândalo, sim, pois era evidente que uma marcha de homens brancos empunhando tochas e entoando slogans racistas e antissemitas em pleno 2017 fazia soar mais do que o alarme amarelo do ridículo e acionava o vermelho do perigo. Se não por outros motivos, bem, pela prosaica e pessoalíssima razão de que na semana anterior, na estreia desta coluna, eu falava justamente sobre a fragilidade de nossos avanços morais e sobre a impossibilidade mesma de pensarmos em progresso nesse domínio: quando julgamos ter superado uma prática ou uma ideia abjeta, como a tortura ou as doutrinas de supremacia racial, elas ressurgem renovadas ou em precário disfarce, para surpresa de quem as julgava vencidas pela marcha da razão e da história. À assustadora marcha noturna do evento que ficou conhecido como "Unite the Right", seguiram-se as consequências como que inexoráveis daquela noite já para sempre macabra: no grande ato realizado pela chamada "Alt Right", nas ruas da geralmente pacata Charlottesville, as mesmas bandeiras que desde o século XIX representaram os linchamentos odiosos, os brutais assassinatos, as indizíveis torturas e a suprema aberração do racismo branco sulista - estas mesmas, as bandeiras da Ku Klux Klan - ressurgiram, erguidas com orgulho por cidadãos comuns, voluntários da ignomínia e da abjeção de um passado infame que a maior democracia do mundo jamais conseguiu superar, talvez nem mesmo entender. Lado a lado a esses símbolos de um passado racista, homens e mulheres comuns, cidadãos americanos, traziam bandeiras nazistas, ciosos de suas suásticas pretas, e, peito arfante, lançavam seus gritos de ódio contra negros, gays e judeus.

Muito se escreveu, durante a semana que passou, sobre esse desconcertante evento. De interpretações da primeira emenda, que assegura o direito até mesmo ao discurso de ódio em nome da liberdade de expressão, à adequação das reações oficiais do presidente americano, Donald Trump, não faltaram análises das mais variadas perspectivas políticas, ideológicas e morais. Não gostaria de cansar o leitor com mais uma opinião sobre esses temas. Antes, prefiro chamar atenção para um ponto que, talvez por sua obviedade, escapou a algumas reflexões relevantes.

Refiro-me ao reprisado argumento de que a violência ocorrida em Charlottesville foi culpa de "ambos os lados". A polêmica começou com a declaração de Trump, que, por ter assim se pronunciado, foi criticado e acusado de relativizar o inaceitável horror dos supremacistas brancos e neonazistas. A seguir, ganhou o mundo, especialmente nas redes sociais - ambiente cada vez mais impróprio para o "debate público". Para alguns defensores de Trump, cabia condenar os acontecimentos, sim, mas acusar os manifestantes da extrema-esquerda, organizados frequentemente sob a bandeira do movimento Antifa (Anti-fascista), de igual violência inaceitável.

Acredito que devemos recusar moralmente a tese da culpa partilhada neste caso. Já escrevi, talvez até demais, sobre o fascínio que a violência política exerce sobre intelectuais e militantes de esquerda, e a violência da esquerda, quer no poder, quer não, é uma ameaça real à democracia e à liberdade. Por que, então, sugiro agora que é inaceitável essa partilha da culpa pela violência? As razões para esta recusa moral, creio eu, têm fundamentos históricos. No fundo, o que aconteceu em Charlottesville nos dias 11 e 12 de agosto foi isto: a História resolveu bater à porta e trouxe consigo três desagradáveis fantasmas do passado: o racismo, o supremacismo branco e o nazismo. E quando esses personagens entram em cena, não é possível usar o argumento do "mas e a violência deles?".

Podemos desconhecer a História. Podemos fazer de conta que não conhecemos História. Não podemos, contudo, viver "fora" da História. A História se fez presente em Charlottesville quando nos ressuscitou os ódios que desejávamos mortos, esquecidos, vencidos. Estava presente, retrincada e odienta, nos símbolos da KKK e do Nazismo. Só que a História também está presente no julgamento que fazemos desses símbolos e desse acontecimento.

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E sua presença é incômoda. Quem julgar os acontecimentos do último fim de semana, deverá ter a menina Ruby Bridges diante de si, com seus seis anos de idade, na Nova Orleans de 1960, escoltada por quadro policiais federais, apenas para ter o direito de frequentar uma escola (na qual, aliás, todos os alunos e praticamente todos os professores recusaram-se a recebê-la). Quem julgar os acontecimentos de Charlottesville, deverá receber a visita de Addie Mae Collins, Cynthia Wesley, Carole Robertson and Carol Denise McNair, as quatro meninas (tinham entre 11 e 14 anos) assassinadas dentro de uma igreja batista em 1963 em Birminghan em um atentado a bomba realizado por integrantes da Klu Klux Klan - exato, a KKK das bandeiras em Charlottesville. Quem julgar os acontecimentos de Charlottesville deverá ter diante de si o horror real do segregacionismo e do racismo, com suas consequências reais para pessoas reais, e não uma ideia esquisita fora de lugar. Quem julgar os acontecimentos de Charlottesville deverá ver perfilados diante de si os mais de 6 milhões de judeus exterminados pela máquina nazista. É com essas presenças reais, com as vozes da História soprando em nossas consciências, que devemos julgar o que aconteceu em Charlottesville.

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É por isso que as declarações de Donald Trump e de seus entusiastas são moralmente inaceitáveis. O analista político que disseca o fenômeno pode e deve pesar a importância da radicalização da esquerda americana no ressurgimento das convicções de extrema-direita naquela sociedade. Fora do escopo técnico desta análise, resta-nos o dever da repulsa e da condenação inequívoca. Ao falhar nisso, Trump falhou como ser humano, como liderança e como presidente dos Estados Unidos.

Talvez por isso eu tenha pensado no depoimento de Dave Brubeck como uma espécie de bússola moral neste caso. Brubeck narra a Ken Burns que a primeira vez que viu um negro foi no rio Sacramento, na Califórnia, levado pelo seu pai. É seu pai quem pede ao amigo negro que abra a camisa e mostre ao menino Dave seu peito: as marcas do racismo, aquele peito negro marcado como gado, essas marcas que levam o octogenário pianista que viu os horrores da Segunda Guerra Mundial de perto às lagrimas, emocionado, relembrando a lição do pai: "These things can't happen".

Essas coisas não podem acontecer. Não de novo.

Eduardo Wolf é doutor em filosofia pela USP, tradutor e editor do Estado da Arte. É curador-assistente do Fronteiras do Pensamento

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