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Um espaço para a discussão de ideias para nosso tempo

Ser mãe é... no paraíso!

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Por Marcelo Consentino
Atualização:

Por Felipe Pimentel

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As expressões populares, sabemos bem, carregam muita sabedoria, seja na sua capacidade de síntese, seja na sua força em dizer o que não pode ser dito. O ditado "ser mãe é padecer no paraíso", muito utilizado em outros tempos, atestava o caráter ambíguo da maternidade: a experiência pode ser paradisíaca, mas não deixa de ser algum modo de padecimento. Na geração mais recente de mães, algo aconteceu, e metade deste significado foi apagado - a maternidade tornou-se santificada. É exigido das mães, desde a gravidez, que se sintam plenas e maravilhadas com a mais pura e bela emoção de sua vida; uma espécie de gozo e estado de graça jamais comparável, sequer atingível por outra vivência subjetiva qualquer; uma graça que traz a exigência de que se vejam lindas e que se dediquem de modo integral e sacrificial à sua gravidez e aos cuidados maternos sem qualquer espécie de incômodo ou queixa, pois "que tipo de pessoa poderia se queixar de estar grávida ou de ter um bebê?"

Todas as transformações subjetivas e corporais da gravidez, todos os cuidados necessários na primeira infância, todas as decisões médicas e cotidianas com a família estão permeadas de uma exigência, a de que estejam alicerçadas no regozijo dessa experiência, na qual toda espécie de incômodo deve ser excluída. Porém, por trás dessa exigência, estão as mães e seus fantasmas; estão mulheres que, por mais que se sintam muitas vezes felizes e realizadas, também podem ter sentido, durante algum tempo, coisa nenhuma na gravidez, estando porém impedidas de dizê-lo, afinal, "como ela pode não estar maravilhada por carregar uma criatura humana em seu ventre?", e tiveram que sentir sozinhas essa inquietação. Ali estavam mães que durante parte da gravidez só sentiram o seu corpo mudar, enjoos, vômitos, tonturas, dissabores incompreensíveis e incomunicáveis; viram seu corpo se transformar, seus pés incharem e suas roupas não mais caberem; isto é, que durante um tempo só sentiram incômodos que se tornavam tão maiores de acordo com o quanto estavam impedidas de senti-los.

Por trás dessa demanda, estavam mães assustadas que vivenciaram uma gravidez repleta de mandamentos dos mais diversos, dos mais místicos aos mais científicos, que mais as encheram de culpa do que de orientação: que se viram responsabilizadas pelas futuras doenças de seu filho de acordo com mínimos detalhes da alimentação durante a gravidez; mulheres que se viram em dilemas sobre como deveriam não só realizar o parto, mas vivenciar o parto, pois além dos alimentos, suas energias e vibrações e estados mentais também afetariam enormemente o desenvolvimento dos seus bebês; mulheres que podiam transparecer egoísmo se dissessem que se preocupavam com suas realizações em outras áreas da vida além da maternidade; mães que foram cobradas se o leite materno descia mais ou menos, se amavam prontamente seus bebês no momento em que eles nasciam, se sabiam cuidar deles como os seus pais cuidaram deles; mães que viram seus bebês nascerem e se sentiam tristes, sem saber o porquê, mas não podiam confessar para nenhum dos fiscais do paraíso materno.

Por trás de tudo isso, está o sofrimento mudo de milhares de mulheres. Mulheres que são ótimas mães ou, para usar a expressão consagrada de Winnicott, que são mães como deveriam ser: suficientemente boas. Mulheres que se sentem felizes com essa experiência, que amam seus filhos e deles cuidam, que se realizam na família que criaram, mas que também padecem de alguns dissabores, de pequenas e grandes dores, de tristezas e angústias - e quem as ouve? Quem ouvirá o choro das mães em meio à maternidade santificada?

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(PS: Uma questão bastante importante parece ser a seguinte: o que houve com a maternidade para ser assim santificada e purificada em nosso tempo? Eu arriscaria uma interpretação: o grande evento subjetivo do século XX foi a derrocada da figura paterna nas famílias nucleares, e, diante disso, a maternidade viu cair sobre suas costas uma carga imensa de responsabilidades que logo se transformaram em exigência. É como se disséssemos para as mães: "se vocês também relaxarem, o que vai ser de nós?")

Felipe Pimentel é psicanalista e historiador.

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