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Sartre e Camus: uma amizade rompida

O breve documentário de Joel Calmettes narra o relacionamento de duas das mais engajadas vozes francesas.

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Por Estado da Arte
Atualização:

Por Willian Silveira

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Tenho me referido com certa frequência à ideia de frame, ou fotograma, para iniciar esta coluna. No caso mais recente, evoquei a imagem como ponto de partida para comentar um dos melhores filmes brasileiros do ano, o documentário afetivo No Intenso Agora, de João Moreira Salles. O que impressiona no fotograma é a ambiguidade da sua existência. Como bem demonstrou o filme de Salles, uma narrativa visual depende de uma série de imagens, encadeadas ou intercaladas. No conjunto da obra, o frame somente tem sentido como parte de uma sequência de imagens. Porém quando recortado do todo, o fotograma, antes a serviço do conjunto, se transforma no isolamento. Afastada das demais, a boa imagem se amplia, criando para si uma história própria.

Não precisamos ir longe para termos um exemplo. No vídeo lançado por este Estado da Arte para apresentar a parceria junto ao Instituto CPFL, encontramos uma sequência de fotos ao final. No contexto, a primeira imagem serve para ilustrar este espaço como um palco para o debate de ideias; uma vez isolada, simboliza um dos grandes registros intelectuais do século XX. Ao redor de Pablo Picasso, em uma reunião para a montagem da peça O desejo pego pelo rabo, escrita pelo pintor, somam-se ao espaço o psicanalista Jacques Lacan, a escritora Simone de Beauvois, o etnógrafo Michel Leris, Jean-Paul Sartre e Albert Camus.

O olhar distraído dificilmente acreditaria que por trás do esnobismo de Sartre e do desinteresse de Camus, visivelmente mais entretido com o cachorro do que com os colegas, havia uma amizade tão intensa e verdadeira a ponto do nome de um imediatamente evocar o do outro - mesmo após o rompimento. Em exibição na programação do canal Curta!, Sartre e Camus: uma amizade rompida é um destes momento de generosidade somente permitidos pela televisão. Dirigido por Joel Calmettes como episódio para a série de televisão francesa Duels, o breve documentário narra o relacionamento de duas das mais engajadas vozes francesas desde o ano de 1943, quando Camus desembarca na Paris ocupada direto da Argélia colonial, até 1952, quando o posicionamento ideológico acerca da Guerra Fria se torna um obstáculo à convivência.

Bastaria lembrar as origens dos escritores, de Paris a Dréan, para sabermos que a capital francesa e o município costeiro de 40 mil habitantes, na província de El Tarif, se tratam menos de realidades distintas do que incomunicáveis. Neste cenário, o berço protestante e burguês, que deixou de legado ao jovem Jean-Paul uma biblioteca de mais de mil livros, contrasta diretamente com o mundo não letrado de Camus. Como reflexo imediato, Sartre segue para a carreira de filósofo na prestigiada École Normale Supérieure enquanto o argelino abdica dos estudos para se dedicar ao jornalismo, necessidade imposta por uma dispendiosa pneumonia aos 26 anos, e que lhe acompanharia por boa parte da juventude.

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A admiração teve a sua faísca inicial com O Muro, publicado em 1939, às vésperas da Segunda Guerra Mundial. O impacto dos cinco contos de um protagonista perplexo diante do mundo em convulsão despertou o interesse de Camus, que reconheceu a abordagem corajosa de Sartre em um ensaio de fôlego. Superada a distância, ambos seriam apresentados em um teatro parisiense. De lá, a identificação imediata, interpretada por alguns comentários frívolos como o interesse de Sartre em ser apresentado a mulheres e o desejo de Camus de participar da alta sociedade. Apesar de inegável neste sentido, a redutora vertente do jogo de interesses se desfaz quando vista à luz de como ambos se completavam como componentes de mundos distintos.

Ancorado em um formato simples porém eficiente, Sartre e Camus estabelece um panorama de época suficiente para enriquecer a compreensão do espectador sobre estes dois personagens. Nos seus pouco mais de 50 minutos, o documentário capta os principais pontos para o desgaste da amizade, desde a influência e a popularidade do Existencialismo até a postura política de ambos durante o pós-guerra. Os tempos sombrios não colaboravam para a alta miopia de Sartre, acentuada no episódio comunista dos Gulags, bem como para o temperamento explosivo de Camus. Diante do passo constante da História, a relação entre violência e ideologia não permitia interpretações, mesmo para amizades tão raras a ponto  de reunir o amor pela ideia à coragem da ação.

Willian Silveira é é editor da revista Sétima e membro da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (ABRACCINE)

http://www.teatrodomundo.com.br/o-mito-de-sisifo/

http://www.teatrodomundo.com.br/a-essencia-do-existencialismo/

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http://oestadodaarte.com.br/existencialismo/

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