I. Pintando o teto da Sistina
A Giovanni de Pistoia
Eu já fiz um bócio neste tormento,como na Lombardia a água com sujeirafaz aos gatos lá ou onde queira,um ventre que força o queixo num momento.
Um peito de harpia, a barba ao alento,a memória pesa o crânio na traseira;o pincel sobre a face qual goteira,me faz, gotejando, um rico pavimento.
Os lombos na pança se me entraram,e o cu contrapesa de garupa o dorso,e passos sem os olhos movo em vão.
Adiante meus couros se estiraram,esticando-os atrás me contorço,qual um arco sírio em tensão.
Uma estranha ilusãosurge ao juízo que a mente porta,qual numa zarabatana um tanto torta.
Minha pintura morta,defende ora, Giovanni, e o meu valor,não sendo um bom lugar, nem eu pintor.
II. O modelo e a estátua
A Vittoria Colonna (segunda versão)
Se bem concebeu a divina parteo rosto e os atos de alguém, aqueladupla força duma coisa vil modela,dá vida a pedras, e não é força d'arte.
Nem de outro modo num rude encarte,até que a pronta mão ao pincel apela,de doutas visões a mais lúcida e bela,prova e revê, e sua estória comparte.
Também de mim modelo de pouca estimaeu me pari, para de vós renasceralto e perfeito, dama digna e supina.
Se ao pouco acresce e ao meu muito limavossa graça, que pena há de merecermeu feroz ardor, se mo castiga e ensina?
III. Em Roma, no Pontificado de Júlio II
Aqui se faz elmo de cálice e espada,e o sangue de Cristo se vende em pujança,e cruz e espinho são escudo e lança;e até de Cristo a paciência acaba!
Mas que não volte a esta parada;iria o sangue seu às estrelas sem fiança,em Roma à venda sua pele balança;e a todo bem fecharam a estrada.
Se eu quisesse possuir um tesouro,porque aqui minha obra foi partida,à Medusa de branco cedia com'um mouro.
Mas se alto no céu a pobreza é querida,quem se restaurará pro mundo vindouro,se um outro sinal sufoca a outra vida?
IV. A morte de Cristo
Felizes tanto quanto turbados e tristes,que tu sofresses, e não mais eles, a morte,ficaram os eleitos, já que a tranca fortedo céu, da terra a nós com sangue abriste.
Felizes; porque, criados, os redimistedo primeiro erro de sua mísera sorte.Tristes; ao ouvir que com pena áspera e forte,a servo dos servos na cruz te reduziste.
Donde vens, quem és, o céu sinalizou,escurecendo seus olhos, turvou as águas,tremeram os montes, e na terra abriu um abismo;
do tenebroso reino os Pais resgatou,os anjos tortos mergulhou em mais mágoas:gozou só o homem, renascido no batismo.
Tradução de Marcelo Consentino.
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