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Poesia em Casa: 'O ser inapreensível'

Por Eduardo Wolf
Atualização:

por Pedro Gonzaga

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Quando se é professor, não poucas vezes os alunos aparecem com perguntas que nem séculos de magistério seriam capazes de responder. E quando se leciona em pré-vestibulares, tem-se a vantagem de que as perguntas sobre literatura são movidas por interesse verdadeiro, mesmo que tenham um quê de utilitário, como uma futura aprovação. De modo que depois de uma aula sobre Fernando Pessoa, na última quarta-feira, um aluno me perguntou na saída:

- Sor, o que faz um poema ser bom? Eu achei esse Mar português demais, mas não sei por quê.

Respondi-lhe que ele estava no caminho certo, que, para descobrir, era preciso passar da certeza intuitiva à dúvida cognitiva. Mais, que ele tinha sido capaz de reconhecer haver sido tocado pelo poema e que agora queria conhecer as razões para tal. Contornei, de propósito, a questão do gosto, o que nos levaria por searas que nem o intervalo que tínhamos pela frente nos permitiria trilhar. (Sobre gosto, recomendo um ótimo artigo aqui no Estado da Arte do filósofo Rodrigo Cássio). Depois, sugeri a ele que voltasse ao poema mais tarde, em casa, em busca daquela sensação poderosa que o levara a vir falar comigo, e que então procedesse a uma autoinvestigação, até ter uma impressão, talvez sempre parcial, de por que sentira isso. 

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Em algum lugar, Borges diz que na primeira vez que lemos um poema, nós o lemos errado, e que este erro (desvio), fruto de nossa ignorância prévia do texto, é o que nos produz o efeito de assombramento, a queda abissal que experimentamos. A cada nova leitura, tentamos reencontrar esse efeito, que não mais se revela tão potente, mas que nos dá, em contrapartida, por meio da razão, um acréscimo de entendimento, e, eu adiria, um mais amplo conhecimento de quem somos como leitores e como criaturas humanas.

Pois no universo da leitura é a poesia a ferramenta mais adequada para a compreensão de nós mesmos. Ao voltarmos a um conto, a um romance, evidentemente que nossa relação com o texto muda, que avançamos em entendimento, mas me parece uma relação sempre mediada por enredos, personagens, tramas. Um poema, ao menos um poema lírico, é sempre a volta a um instante agudo, a um só tempo, estático e extático, mesmo e diverso, feito da máxima compressão de todas as noções e sensações do estar no mundo: memória, sentidos (a memória dos sentidos), razão, fé e tudo o que disso chega à praia fria da linguagem. E aqui paro para não parecer exotérico. Conto com a ajuda de quem lê para me entender.

Creio agora, mas agora é tarde, que teria sido mais fácil mostrar com um poema de Yannis Ritsos, mestre da lírica grega moderna, o motivo de minha coluna de hoje: o grande e continuado esforço para entender um grande poema. Como quer que seja, concluo fazendo o que sugeri ao meu aluno: relerei pela enésima vez a este ser inapreensível, construído de ruidosas letras negras e branco silêncio, que alguns, como aqueles antigos e apaixonados naturalistas, levam a vida a observar, mas nada direi sobre o observado. Seria sobre mim, e uma nota de pudor, nos dias de hoje, nunca é acessória.

Nu

Aqui em meio à bagunça do quarto

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entre livros poeirentos

e retratos de antigas pessoas

entre o sim e o não de tantas sombras

um feixe imóvel de luz

aqui nesta posição

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onde certa noite você se despiu

Pedro Gonzaga é poeta, tradutor, músico e professor. Doutor em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, é autor de A Última Temporada Falso Começo (Editora Ar do Tempo). Acaba de lançar O Livro das Coisas Verdadeiras (Arquipélago Editorial), sua estreia na crônica.

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