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Os irresponsáveis não mudam quando os fatos mudam: Tony Judt e o Brasil de 2018

No Brasil, a ideia de que houve uma mudança importante na sociedade brasileira ainda não foi percebida pelos políticos. Os fatos mudaram, mas as opiniões (e as práticas) dos políticos não.

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Por Estado da Arte
Atualização:

O historiador britânico Tony Judt.  

por Vinícius Müller

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A História se revela em tempos diferentes. Isso é óbvio e bastante conhecido, como definição, entre aqueles que se debruçam sobre ela. Prazos mais alongados, permanências de longa duração, eventos revolucionários, mudanças de conjuntura. Tudo o que se refere ao tempo é peculiar, portanto, à História. O problema é que a definição sobre o que corresponde à longa duração ou à estrutura, assim como aquilo que compete ao médio e ao curto prazo, é de difícil, quase impossível, determinação precisa tanto em relação aos seus objetos quanto aos prazos. Em outros termos, não sabemos com exatidão quais objetos podem e devem ser entendidos em sua longa duração e quais, por outro lado, são representantes da curta duração. Além disso, quanto tempo configura a longa duração? E a conjuntura? Ou seja, tanto em relação aos objetos quanto aos prazos, a operacionalidade daquele que estuda a História e, por definição, tem como ponto de partida a preocupação com os tempos diferentes, torna-se muito mais complexa quando precisa definir o que deve ser visto e em qual perspectiva temporal deve ser abordado. 

Exemplos não nos faltam. Chamamos de Revolução o que ocorreu na França de fins do século XVIII, evento cheio de rupturas e até com data comemorativa. Mas, também chamamos do mesmo modo aquilo que ocorreu na Inglaterra durante a segunda metade dos oitocentos e início do século seguinte, mesmo que o termo 'Revolução Industrial' só tenha sido usado aproximadamente cem anos depois do que é considerado como o início do processo. O britânico Adam Smith, talvez o mais competente analista da economia em todos os tempos, publicou sua obra máxima (A Riqueza das Nações) em 1776, portanto na mesma época e na mesma região que ocorriam as primeiras transformações que, cem anos depois, foram chamadas de Revolução Industrial. O mais importante, no entanto, é que Adam Smith não dedica nem uma linha ao fenômeno. O maior analista econômico da história não percebeu que aquilo que vivia era o início de uma revolução!

Assim, é razoável ao historiador observar e compreender as relações entre objetos que respondem a prazos diferentes, mas que convivem no mesmo espaço e, principalmente, no mesmo tempo. Mesmo que tal desafio seja ingrato, dada a impossibilidade de, com precisão, definir quais objetos são entendidos no longo prazo e quais o são no curto prazo. Nesse caso, eles se confundem e influenciam um ao outro. Esta convivência não é nem de longe equilibrada. Em muitos momentos, a História nos mostra que eventos singulares foram tão decisivos que subordinaram os elementos mais antigos e enraizados, forçando uma adaptação mais rápida e mesmo dolorosa ao novo contexto. A Segunda Grande Guerra (1939-1945), por exemplo, representou uma ruptura tão violenta da ordem anterior, que tornou impossível a manutenção dos impérios europeus e de certa mentalidade ainda amparada na 'Belle Epoque' do velho continente. Sobre isso, Tony Judt escreveu uma coletânea de ensaios cujo titulo parafraseava uma frase de outro gigante, John Maynard Keynes: "Quando os fatos mudam" (Ed. Objetiva, 2016). A frase completa, atribuída ao economista inglês, é "quando os fatos mudam, eu mudo de opinião. E o senhor, o que faz?" e serviu de inspiração para que Judt identificasse eventos que de tão definitivos acabaram por determinar uma mudança de longa duração na História. Porém, concomitantemente, a indagação de Keynes e o uso feito por Judt também indicam que, mesmo sob tais condições, alguns ainda mantêm sua opinião como se os fatos não tivessem sido suficientemente convincentes em favor da mudança. Em outras palavras, há um aparente conflito entre a coerência e a responsabilidade. Coerência em manter aquilo que está enraizado pela longa duração; responsabilidade em identificar que, às vezes, é preciso abandonar a coerência em nome da subordinação às mudanças dos fatos. 

Há uma passagem da história econômica britânica na qual, durante a década de 1920, a reinstalação do padrão monetário e cambial que vigorara até 1914 foi vista como a melhor tentativa para a reconstrução de certa cooperação econômica entre os países europeus. O problema foi que, mesmo sendo pertinente, tal tentativa não considerava a mudança do contexto proporcionada pela Grande Guerra que terminou em 1918. Nesse caso, ao reorganizar sua economia como se a Guerra não tivesse gerado uma profunda alteração da História, a Inglaterra não só foi mal sucedida em restaurar o padrão monetário e cambial anterior como os problemas de tal padrão foram potencializados. O fracasso britânico em restaurar o padrão-ouro em meados da década de 1920 está entre os motivos da ampliação das desconfianças que, anos depois, ficaram insustentáveis. O resultado foi a escalada que nos levou a Segunda Grande Guerra. 

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Identificada a dificuldade em estabelecer os limites e as intersecções entre objetos e tempos diferentes ou entre a manutenção da coerência e a responsabilidade frente à mudança, é possível ter uma abordagem, quase uma metodologia, para o entendimento da História. Analogamente, portanto, é possível identificar outros momentos nos quais a mesma abordagem pode ser usada. Nesse sentido, alguns fatos recentes nos permitem repensar nossa história e nossa responsabilidade. Entre eles, eventos que, respeitadas as proporções diminutas que tiveram se comparados a eventos maiores como a Segunda Guerra ou a Revolução Francesa, podem ter sido definidores de um novo contexto pelo qual ainda somos cercados. 

Protestos em junho de 2013 tomaram conta do país. Foto: Marcos de Paula/Estadão

O esgotamento de certo modelo instalado desde o final dos anos 80, associado a uma mentalidade e a um discurso que vigorou nos últimos quinze anos no Brasil, fez com que aquele que era um protesto contra o aumento da passagem de ônibus se desdobrasse, respeitando as especificidades de cada movimento, em manifestações que ajudaram a derrubar a presidente da república anos depois. Esses eventos mudaram de tal modo nosso contexto que ainda estamos perplexos com seus desdobramentos jurídicos, econômicos e políticos. A operação Lava Jato continua gerando euforia e depressão, a crise econômica não cede apesar de alguns pequenos sinais positivos e o quadro eleitoral continua gerando calafrios. O espanto é que grupos e lideranças, mesmo com tamanha mudança dos fatos, mantêm suas antigas táticas e estratégias como sinal de coerência. Não se dão conta, ou não se interessam em perceber, que a suposta coerência, neste momento, é irresponsabilidade. E que o resultado de tal irresponsabilidade não pode ser transferido ao potencial adversário. Não é o adversário que ameaça, mas a manutenção da estratégia, já envelhecida, por quem um dia já foi beneficiado por ela. E que, agora, insiste em mantê-la em nome da coerência. 

Os nomes dos bois são conhecidos: a manutenção da tática anterior, mesmo que um dia tenha sido coerente, ajuda a explicar os resultados das atuais pesquisas eleitorais. A dúvida que elas até agora levantam é se teremos um próximo presidente que governará o país dos anos 50 ou outro que governará o país do início dos anos 60. O problema é que nem um, nem outro responde aos nossos atuais desafios. E, nesse caso, a responsabilidade não é nem de um, nem de outro. Ambos compartilham a mesmíssima irresponsabilidade. 

Adam Smith não se deu conta das mudanças estruturais que a mecanização da produção traria aos ingleses. Os mesmos ingleses não se deram conta do alcance das mudanças que os fatos relacionados à Primeira Guerra promoveram. Aparentemente, algumas forças políticas brasileiras não se deram conta das mudanças que os protestos de 2013 e o impedimento da presidente três anos depois nos impõem. Insistem na autointitulada coerência. Estão errados. Não é mais coerência. É irresponsabilidade. Só os irresponsáveis não mudam quando os fatos mudam. Eis o que melhor nos ensinou Tony Judt. 

Vinícius Müller  é doutor em História Econômica pela USP e professor do Insper.

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