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O peso da História: Era uma vez em... Hollywood

Novo filme de Quentin Tarantino retrata um dos períodos mais emblemáticos da história norte-americana recente.

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Por Estado da Arte
Atualização:

por Miguel Forlin

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Tonight the westerns stars are shining bright againWestern Stars, de Bruce Springsteen

No começo de Era uma vez... em Hollywood, Rick Dalton (Leonardo DiCaprio) e Cliff Booth (Brad Pitt) aparecem lado a lado num preto e branco anacrônico, dando entrevista a um dos programas mais famosos da televisão dos Estados Unidos. Nesse início, há duas linhas mestras que perpassarão toda a narrativa do mais recente longa-metragem de Quentin Tarantino: a presença física de personagens fictícias numa realidade histórica concreta, invadindo violentamente a celuloide, e a dinâmica da relação entre Dalton e Booth, indicada ainda num dos diálogos iniciais. 

Esse primeiro aspecto não é novo na filmografia do diretor. Em Bastardos Inglórios, Django Livre e até em Os Oito Odiados, se vê a alteração da história, ou, ao menos, a sua transfiguração momentânea, sendo ocasionada por personagens saídas diretamente do imaginário de Tarantino, desenhadas a partir de um rico referencial cinematográfico. O segundo, todavia, apesar de parecer, à primeira vista, uma particularidade restrita somente ao relacionamento do protagonista com o seu melhor amigo e dublê profissional, transcende a impressão inicial, dita a lógica da narrativa até o final agridoce e apresenta, pela primeira vez no universo do cineasta, um diálogo entre o real e o fictício no qual ambos têm a sua importância, pesando similarmente e mantendo, assim, a balança equilibrada.

Nos seus três filmes anteriores, Tarantino manipulou livremente momentos marcantes da história humana e submeteu-os à sua lógica, sobrepondo o seu estilo às características estéticas dos períodos retratados e jamais atingindo a densidade histórica que imaginava atingir, pois, embora tenha se esforçado para analisar criticamente o comportamento dos antepassados, era o cinema, visto pela sua perspectiva, que se colocava em primeiro plano. No entanto, nunca de um jeito apenas nostálgico ou laudatório, mas narcísico, meramente estilístico (no pior sentido do termo), negligenciando o peso e a ordem interna tanto dos gêneros em que trabalhava quanto das consequências que as suas escolhas geravam. Tudo terminava em farsa, caricatura.

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Em Era uma vez... em Hollywood, há uma mudança. A natureza da amizade entre as duas personagens principais já é um elemento inédito dentro do revisionismo que marcou as últimas empreitadas. Enquanto Dalton é um ator de cinema e televisão, famoso por faroestes e filmes de ação nos quais faz os espectadores acreditarem nas suas peripécias físicas, entregando-lhes recorrentemente pílulas de ilusão, Booth é o sujeito que realmente as realiza, aquele que coloca a própria vida em risco para que as obras sejam feitas. Ficção e realidade estão, portanto, personificadas nas figuras de DiCaprio e Pitt e ligadas por um elo de fraternidade, elo que, aliás, faz com que um complete o outro de maneira indissolúvel. O fato de se encontrarem várias vezes juntos só corrobora esse comprometimento do real com a sua transformação em arte.

Logicamente, isso também se alastra por outras decisões formais, narrativas e temáticas de Tarantino. Como um tridente, a história se divide em três pontas, todas inseridas no contexto histórico em que se desenrolam. Se Dalton é encarnação de um universo em decadência, que está perdendo espaço para novas produções e diferentes tipos de astros, e Booth é a representação de uma realidade mais distante das fantasias vendidas por Hollywood (os planos-detalhes revelando os seus gostos simples e a precariedade do trailer onde mora não deixam a menor dúvida a respeito), a estrela em ascensão Sharon Tate (Margot Robbie) contém em si o que de melhor havia na época: o espírito jovial. Ela é como o símbolo purificado das ideias e dos ideais que circulavam abertamente entre os grupos característicos da segunda metade da década de 1960.

Ao passo que essas três narrativas se desdobram paralelamente, há a aparição da seita de Charles Manson (Damon Harriman), primeiramente na imagem de uma jovem (Margaret Qualley) que se interessa por Booth, posteriormente, na presença dos três que, na vida real, viriam a matar a esposa de Roman Polanski (Rafal Zawierucha). Como uma força motora que direciona tudo a um ponto em comum, o movimento hippie é a manifestação coletiva do zeitgeist, o espírito do tempo que engole tudo o que o antecede, se pondo, por consequência, a caminho de um fim aparentemente inevitável. O evento-síntese desse período seria o assassinato de Tate, o instante de intersecção entre dois períodos distintos.

Assim, por contar uma história conhecida do grande público, Tarantino faz com que todos os blocos narrativos trilhem rumo ao momento-chave, como se tudo fosse um grande rito de passagem (a grande quantidade de travellings laterais ressalta a sensação que todas as personagens estão em movimento, lançando-se a um clímax que apenas o espectador sabe de antemão). Ao ter como base, portanto, as engrenagens históricas que manipulam o destino das personagens, cabe a Tarantino colocar a sua câmera e o seu filme nas mãos da estética da época, o que resulta numa supressão parcial de algumas de suas características (como a verborragia e a violência gráfica) em prol de um mergulho nas roupas, nos ambientes e nas músicas, numa espécie de trabalho iconográfico.

Entretanto, quando chega, no terceiro ato, a cena definitiva para a qual tudo se caminhou, Tarantino abandona o comedimento que o guiava até então e cede completamente, realizando um clímax violentíssimo, catártico, insanamente cômico e profundamente revisionista, mas, ao contrário dos esforços vistos nos longas anteriores, em que não existia a tensão entre a exacerbação estilística e o realismo sóbrio, o fim de Era uma vez... em Hollywood surte o efeito pretendido, e isso ocorre não só por Tarantino ter respeitado as especificidades históricas que preparam o terreno para o final, mas também por nos fazer sentir emocionalmente o peso de suas escolhas, naqueles que são os minutos derradeiros mais melancólicos e ternos da carreira do cineasta.

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Conclui-se, adicionalmente (com informações que não podem ser dadas para não estragar a experiência do público), que os heróis que povoavam os faroestes e os filmes de ação não estão somente na tela do cinema, mas fazem parte do dia-a-dia. O conto fictício, com o título inspirado num clássico de Sérgio Leone, que é uma referência à cidade dos sonhos, das ilusões e das fantasias, também faz menção à conquista do Oeste, ao avanço dos pioneiros. Nos Estados Unidos, história e cinema misturam-se. Curiosamente, num filme de Tarantino, o primeiro do diretor em que parte da história é revista com as preocupações necessárias.

Miguel Forlin é crítico de cinema e colaborador de diversas publicações na área.

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