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"O imperador de bambu", de José Francisco Botelho

José Francisco Botelho lançou o livro de contos "Cavalos de Cronos" (Editora Zouk), e o Estado da Arte publica um trecho do conto "O imperador de Bambu".

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Por Estado da Arte
Atualização:
 

 

Para Laura.

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O relato original sobre a vida e a obra do imperador Wei Hsiang há muito se perdeu. Subsiste, contudo, uma tradução ao latim, feita pelo PAntonio Covarrubias, em data incerta; o manuscrito - "De Arundineo Imperatore" - encontra-se nos discretos arquivos da Sociedade de Jesus em Porto Alegre. O acesso ao documento é limitadíssimo. O texto que se segue é uma paráfrase parcial da versão latina, a qual examinei apenas uma vez, sob o olhar de um secretário de feições vagamente patibulares.  Leitoras e leitores de mente arguta saberão perdoar, sem dúvida, certas interpolações de estilo "moderno".

I.

 

É a contragosto que retorno ao pesado ofício da escrita. Nele, tudo agora me parece impróprio: por mais ângulos que eu experimente, o cálamo não se ajusta aos dedos, e seu manuseio contorce dolorosamente meus tendões; a carne branca do bambu parece um suporte estranhamente desastrado à tinta vermelha, que respinga, escorre e sempre quer borrar. Contudo, nada me resta além de cumprir a função designada: devo agora falar sobre os tempos do imperador Wei, filho de Wo, vindo ao mundo no zênite do antigo império, no trigésimo ano do reinado de seu pai, quinhentos anos após a construção do grande dique e um século após a primeira perturbação do calendário[1].

Foi um nascimento auspicioso: interrogados pelo fogo, os ossos de dragão emitiram prognósticos festivos. (Mais tarde, alguns céticos usariam esse fato como argumento contra a veracidade dos oráculos; mas por que deveriam os deuses dizer sempre a verdade?) Em honra ao recém-nascido, o povo encheu as ruas da cidade ao som de gongos e flajolés;  cem escravos tiveram os crânios piedosamente rachados por lâminas de bronze; e os habitantes do campo emergiram das tocas, piscando os olhos ignaros à luz de súbitas fogueiras. Era claro para todos que a Benevolência dos Céus reservaria grandes feitos ao jovem príncipe: como flor heliotrópica brotada no auge do verão, ele já nasceu envolto na grandeza de seus ancestrais, profundos civilizadores da raça humana. Seu mais remoto antepassado foi o Decifrador da Tartaruga, que descobriu os ideogramas, domou o búfalo aquático e ensinou boas maneiras aos ásperos moradores do pântano. Seu tataravô foi o Divino Legislador, que instituiu os sacrifícios propiciatórios, o cozimento de cereais e as mutilações judiciárias; a linhagem prosseguiu em abundante virtude até os tempos de seu avô e de seu pai, que construíram postos e fortins nos desertos vermelhos e nas ininteligíveis estepes do norte; nessa época, argutos emissários recolheram tributo na terra dos homens peludos, que bebem leite de cabrita e fornicam com gazelas; e o Rabo do Iaque, estandarte do império, tremulou mesmo entre os Trogloditas dos ermos gelados, que se vestem com penas de pássaro e cobrem o rosto com gordura de javali; enquanto isso, imponentes paliçadas detinham o avanço dos bárbaros ocidentais, de olhos horríveis e eriçadas aljavas. Sob o bondoso jugo dessa raça de heróis, a humanidade calidamente prosperou.

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A educação do príncipe-herdeiro foi deixada a cargo de Yuë, o célebre historiador e arquivista, fruto de um clã de eruditos; seu tataravô fora o Agrimensor Manco, que desviara o curso de sete rios e compusera cinco tratados clássicos. Professor experiente, Yuë logo percebeu que seu aluno tinha um curioso pendor para todas as coisas: aprendia sem dificuldades e repetia sem falhas. Yuë lhe ensinou os três deveres do cavalheiro, as cincos doutrinas das relações humanas, as seis dádivas da natureza; explicou-lhe os prognósticos claros e escuros, os arranjos terrestres e astronômicos, as mutações de pássaros, bestas e mariposas. Também supervisionou suas lições junto ao Mestre dos Cavalos, o Mestre-Arqueiro e os Cinco Estrategos. Em todas as áreas, o príncipe Wei mostrava-se exato e homogêneo.  Aos quatorze anos, era capaz de acertar quatro flechas no mesmo ponto do alvo, conforme exigem os poemas marciais. Tanto nos protocolos da corte quanto no prosaico dia-a-dia, seus movimentos eram amenos e solenes: impecável era sua mão ao dedilhar o alaúde; perfeita, sua voz ao entoar o elogio dos ancestrais; quando vertia a libação sobre os rotundos altares, o vinho amarelo afilava-se graciosamente antes de estalar na superfície de pedra. Os súditos e cortesãos contemplavam-no com admiração extática. Já o professor Yuë observava os avanços do discípulo com aprovação protocolar, mas insincera: havia algo de inquietante naquele apanhado de amorfas perfeições. Onde estavam os necessários defeitos que, corrigidos e sublimados, faziam com que um homem se diferenciasse de outro? Se todos os rostos fossem simétricos, não haveria feições distintivas e, portanto, não haveria rostos; a excelência indiferenciada faz com que nada seja, de fato, excelente... Yuë pensava nisso ao acompanhar os exercícios do herdeiro-aparente no paço, em nebulosos chuviscos de inverno; mas ficava em silêncio, limitando-se a cofiar vagamente as orlas do manto azul, forrado em pele de texugo.

No verão seguinte, chegou o momento de iniciar o príncipe no cultivo das belas odes e dos verídicos relatos. Yuë conduziu-o à Câmara Ancestral, na ala norte do Palácio; diante dele desenrolou, com reverência, os rolos de bambu onde estão inscritos os documentos do Cânone. Enquanto o príncipe aplicava-se à leitura, uma libélula, fugindo ao calor meridiano, irrompeu das sombras e pousou sobre a testa do rapaz. A claridade do entardecer, seccionada pelas cortinas de bambu, lançava tiras horizontais em seu rosto, enquanto o inseto transitava com aleatória curiosidade entre a luz e a sombra. Yuë flagrou-se a pensar, absurdamente: Por que ele não espanta a libélula? Basta abanar a mão.As horas passavam; o príncipe recitava imóvel, feito estátua falante; e a libélula continuava perfazendo um zigue-zague indecoroso entre sobrancelhas, cabelos e nariz. Yuë experimentou o imperdoável desejo de estapear a testa de seu suserano. Controlou-se, é claro; mas jamais se dissipou de todo aquela vaga impressão de impropriedade, aquela certeza minúscula de que algo estava imensamente errado.

Seguiram-se semanas, meses de aprofundada leitura. Pela primeira vez em anos de tutoria, Yuë teve um vislumbre de autêntica satisfação. É de bom tom que um aristocrata afete gostos literários, mas o fato é que poucos são sequer capazes de ler um poema até o fim. O príncipe Wei, contudo, lia-os na íntegra, com aplicação vagamente maníaca. Em um governante, o excesso de erudição e sensibilidade é quase um capricho, quase um defeito; Yuë estimulou esse pecadilho, acreditando que assim redimiria o príncipe de sua exasperante tendência à impecabilidade. (Mais tarde, o desavisado professor haveria de arrepender-se, inutilmente).

No mês em que os grilos se escondem sob as camas[2], o professor passeava com seu discípulo em um arrabalde da capital, apreciando o rasante das águias-pescadoras entre aguapés e lentilhas-d'água. O príncipe deteve-se de repente e recitou uns versos que havia decorado. Yuë não os reconheceu de imediato. Estreitou os olhos, remexeu a poeira da memória e compreendeu: eram as linhas iniciais do Lamento do Outono Impertinente, escritos havia quinhentos anos pelo Visconde de Tang, o mesmo que construíra o grande dique; o longo poema descrevia uma única tarde passada em um triste e melodioso jardim, na época das primeiras brisas geladas - ou algo do gênero. Yuë estava prestes a tecer alguns comentários sobre a obra, quando o príncipe observou de forma casual e irrespondível:

- É o maior poema jamais inscrito em páginas de bambu.

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Yuë fez uma suave e metódica mesura. Os dois continuaram passeando até a arenosa curva do rio.

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Antes que chegasse o inverno, o príncipe declarou o solene desejo de escrever um poema: "Algo que me permita, ao menos, roçar o manto do Visconde de Tang", especificou, com seriedade sacerdotal. A mesa, o cálamo, a tinta vermelha, as virgens tiras de bambu foram dispostas metodicamente no aprazível centro de um horto. Ao longo da tarde, o príncipe esteve sentado sobre o tapete de cânhamo, os olhos fixos no bambu em branco. Ao crepúsculo, levantou a cabeça. "Preciso de música", disse; em instantes, cercaram-no operosos alaúdes e flautins. Quando a lua surgia no terraço do palácio, a mão do príncipe adejou bruscamente ao clarão dos archotes: "Muito barulho; preciso de silêncio". Os músicos desapareceram com a mesma eficácia com que haviam surgido. As tiras de bambu continuavam vazias. Nesse ponto, o professor Yuë, embrulhado no manto, em um canto mais ou menos protegido do vento, acabou deslizando para um sono espasmódico, cortado por calafrios. Despertou no lusco-fusco e viu o avermelhado vulto do príncipe, de pé junto às brasas de uma trípode. Estalos sincopados ricocheteavam no frio da madrugada: eram os bambus ardendo lentamente. O príncipe então anunciou, para ninguém em específico:

- Vou caçar.

Passou por Yuë na penumbra da aleia, sem olhá-lo; mas o professor teve um vislumbre de seu rosto no alvorecer cinzento. A intempestiva carruagem do príncipe disparou pelos portões antes que o sol terminasse de raiar. Voltou ao anoitecer, com as carcaças de cinco javalis espetados de flechas. Após esse dia, o príncipe jamais tentou escrever coisa alguma.

O discreto fracasso foi esquecido por todos, ou quase todos (o príncipe, é certo, não o esqueceu), pois fatos prementes agitaram o império no início do ano seguinte, no mês em que os dragões vão hibernar na lama. Em viagem pelas províncias ocidentais, o imperador Wu e todo seu séquito foram engolidos por uma rubra tempestade de areia, saída das regiões da barbaria. A grande capital compungiu-se em luto hierático. Por três anos, a música foi proibida em todas as casas, e o herdeiro-aparente habitou um tugúrio no pátio ocidental, dormindo sobre palhas ascéticas e passando as horas do dia em hermética escuridão. Emergiu no devido tempo, sombrio e macilento, apoiando-se num cajado de cana; das mãos do primeiro-ministro, recebeu o bastão senhorial e o mandato do Céu. A plana tiara, de quatro costados e dezoito pingentes, foi-lhe encaixada à cabeça; nos quatro portões do palácio, recebeu a homenagem das nove províncias; em suas mãos, cintilaram os jades da esfera armilar. Ao luto sucedeu-se a euforia. O imperador era jovem, belo, de sólidos princípios; a paz fluía docemente nas veias do império, irrigando até as mais inacessíveis aldeotas; todos os seres animados e inanimados eram seus súditos (exceto os bárbaros, que não pertencem ao universo das coisas reais).

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Grandes esperanças animavam as mentes cultas, pois correu o boato de que o jovem imperador nutria modestas mas fervorosas veleidades literárias. Eruditos de todas as cepas acorreram à capital; a ordem dos escribas aumentou em tamanho e poder, e a vida palaciana tornou-se um sarau perpétuo. A recitação de versos tomou o lugar da vanglória guerreira no escambo das vaidades cortesãs. Jovens arrivistas desafiavam-se para duelos de jogral, esgrimindo ditos espirituosos e alusões prolixas. No recesso dos aposentos, todos se esforçavam em abarrotar a memória com os versos do Cânone. Em vez de emitir simples ordens à criadagem, as damas recorriam a duas ou três linhas compostas há mil anos pela Suave Marquesa do Sul; as aias respondiam com algum epigrama ainda mais antigo, cunhado pelo Exímio e Generoso Calígrafo ou outro escriba legendário. Um arrepio enciclopédico percorria a corte, de ponta a ponta; mas a todo esse entusiasmo, o professor Yuë permanecia apartado. Seu olhar vigiava discretamente o ex-pupilo. Às vezes, no fundo dos ilustrados banquetes, em meio às recitações e toadas, o imperador mergulhava de repente em soturna meditação; Yuë então entrevia em seu rosto a mesma expressão que relanceara naquela madrugada, anos atrás, quando o príncipe se afastava a passos largos da trípode fumegante: os olhos de um fantasma que alguém invocou por engano.

(Para ler a íntegra do conto, compre o livro Cavalos de Cronos, de José Francisco Botelho).

 

[1]Provável referência a um eclipse.

[2]Provavelmente o início do outono.

 

José Francisco Botelho traduziu "Contos da Cantuária" (Chaucer) e "Romeu e Julieta" e "Júlio César" (Shakespeare) para a Penguin/Companhia das Letras, tendo vencido duas vezes o Jabuti na categoria de tradução. É escritor, jornalista e tradutor. Seu livro de contos A árvore que falava aramaico (Zouk - 2011) foi finalista do prêmio Açorianos. 

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