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O Eco da História: resultados eleitorais e diferenças regionais (parte I)

Como interpretar as divisões regionais nas eleições brasileiras à luz da história do país?

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Por Estado da Arte
Atualização:

 

por Vinícius Müller

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Uma das mais complexas e desafiadoras tarefas de quem tem a História como ciência e o tempo como objeto é identificar o exato momento que marca o início de uma trajetória que deve ser narrada. As pertinentes imposições feitas pelas ciências duras estabelecem que as relações de causalidade e de complementariedade devem ser objetivamente comprovadas, e as técnicas para isso são bastante avançadas. Contudo, o fazer da História, assim como, em regra, o fazer das Ciências Humanas, não tem como metodologia e nem como objetivo o estabelecimento de linearidade passível de ser encaixada pelas ferramentas das Ciências Exatas. Ao contrário, é exatamente na sutileza quase impossível de ser captada pela técnica de mensuração que se abre uma fenda à disposição da Sociologia, da Antropologia, da Filosofia e da História. Em especial à História, esta fenda tem em certa abstração da longa duração temporal sua aliada. 

Assim, podemos estabelecer a Grécia Antiga como marco inicial de certa trajetória com a qual nos identificamos. Ou o Humanismo Renascentista, a chegada de Colombo à América, a colonização portuguesa no Brasil, a Revolução Francesa. Ou ainda, a formação cultural, étnica e religiosa dos africanos que para cá vieram como cativos, os rituais dos indígenas, a educação jesuítica, entre tantos outros. Exemplos não nos faltam. Quando a chave explicativa para a formação da Europa contemporânea estava na ascensão do liberalismo e do iluminismo, o brilhante Jaques Le Goff nos mostrou que de certo modo estava mesmo na Idade Média. Quando a inflexão para o entendimento sobre a sociedade mexicana do século XX era a conquista de Cortés, o genial Octávio Paz nos mostrou que eram também as sociedades pré-colombianas que por lá se desenvolveram. Quando insistíamos que o entendimento sobre o atraso histórico do Brasil devia ser visto no período colonial e na exploração portuguesa, Sérgio Buarque de Holanda nos convenceu que estava bem antes, lá na mentalidade que se firmou e se reproduziu em Portugal logo após a queda do Império Romano. Por fim, quando Marx e seus seguidores tentavam mostrar que o capitalismo só nasceu com a Revolução Industrial, outro 'monstro sagrado', Fernand Braudel, falava em capitalismo no comércio mediterrânico no alvorecer da modernidade. 

Por isso, a História é ampla, aberta e nunca definitiva. Por isso também que as intenções de colonizá-la, seja pela Economia - que aplica seus métodos ao passado - seja pela Sociologia - que prescinde de cronologia - são sempre parciais e facilmente controladas. Por outro lado, a História, com sua multiplicidade de pontos de origens e, portanto, de trajetórias, não consegue estabelecer algumas relações entre eventos muito distantes e nem as mudanças e permanências de longa duração sem deixar algumas incongruências pelo caminho. De certa forma, este é o charme da História e sua fraqueza.

Então, como provar que determinado comportamento presente no país do início do século XXI tem origem na escravidão? Ou que a ascensão de certa liderança guarda relação com o que ocorreu meio século atrás? Por que não com aquilo que ocorreu um século e meio atrás? As relações não são lineares. Ou seja, o comportamento eleitoral pode ser visto como reflexo de certas definições que foram estabelecidas no século XIX? E tudo o que já ocorreu desde então, não transformou o comportamento dos indivíduos? Contextos específicos, circunstâncias especiais, eventos disruptivos: todos contribuem para a abertura de desvios, de novos entendimentos, de mudança de rota, de incorporação de novos elementos. 

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Mas, chama a atenção como em certos momentos os fatos confirmam elementos distantes no tempo, como se certas condições presentes reavivassem definições pretéritas que estavam escondidas. Não sabemos ao certo que condições são estas, mas é possível identificar que, normalmente, se relacionam com momentos de dúvidas morais da sociedade, crises existenciais ou ameaças de guerra ou de rupturas institucionais. É como se em certos momentos, marcados por tensões e rivalidades acima do esperado, elementos mais profundos que estavam escondidos se apresentassem à sociedade. Por exemplo, um interessante estudo publicado pela britânica The Economist especulou que os resultados das duas últimas eleições na Polônia revelaram as divisões que existem no país e que foram geradas pela dominação imperial de austríacos e de russos na região. Ou seja, regiões polonesas que foram, no século XIX, parte do Império Russo guardam certas características muito diferentes daquelas outras que foram parte do Império Austro-Húngaro. E que tais diferenças são apresentadas, mais de um século depois, nos resultados eleitorais. A população da parte 'russa' da Polônia votou maciçamente no candidato Andrezej Duda, enquanto a parte 'austríaca', no candidato vencedor, Bronislaw Komoroswski. 

O mesmo exercício histórico no Brasil seria interessante. Nas duas últimas eleições presidenciais uma divisão (entre tantas possíveis) foi consolidada. Divisão que já havia aparecido de modo menos saliente nas eleições de 2006 e de 2010. Há dois arcos eleitorais que, em linhas gerais, se reproduziram nas quatro últimas eleições majoritárias no plano nacional. Em 2006, na disputa entre Lula e Alckmin, o primeiro foi o mais votado em todos os estados, exceto no Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso e Roraima. Em 2010, na disputa entre Serra e Dilma, a candidata do partido do então presidente Lula venceu a eleição em um maior número de Estados. Mas, Serra, do mesmo partido que Alckmin, venceu no Acre, Rondônia, Minas Gerais, Espírito Santo e Goiás, além dos estados que seu correligionário havia vencido na eleição anterior.  A única diferença no resultado da eleição de 2014, entre Dilma e Aécio Neves, foi a vitória do candidato do PSDB no Distrito Federal. Por fim, na eleição de 2018, entre o candidato do Partido dos Trabalhadores, Fernando Haddad, e Jair Bolsonaro, o primeiro foi o mais votado em nove estados: Bahia, Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará, Piauí, Maranhão, Tocantins e Pará. Enquanto seu adversário venceu as eleições com a maior proporção dos votos nos outros estados brasileiros. Bolsonaro, portanto, venceu nos mesmos estados que Aécio e ainda 'roubou' Minas Gerais, Rio de Janeiro, Amapá e Amazonas do candidato do PT. 

As coincidências e seu comportamento na trajetória são visíveis: o 'arco' que forma a parte mais a leste do país manteve-se, mesmo que com algumas perdas, fiel ao candidato do PT. O inverso é verdadeiro. Ou seja, o 'arco' que sai do Rio Grande do Sul e faz uma curva em direção ao oeste do país, votou em Bolsonaro, assim como, em escala um pouco menor, já havia votado em Aécio, em Serra e em Alckmin. Certamente, existem outras conclusões. A divisão pode ser feita por municípios, por faixas de renda, por cidades maiores e menores, por IDH, e mesmo pelas diferenças entre os candidatos em cada região ou estado. Por exemplo, em estados nos quais Bolsonaro venceu, a diferença de votos que obteve em relação a Haddad não é a mesma em todos eles. Contudo, se usarmos apenas a divisão de 'os vencedores levam tudo', atribuindo a vitória àquele que mais voto teve em um estado, os mapas por estados são incrivelmente parecidos, ou reproduzem uma tendência, desde 2006. 

Sendo assim, a questão que se impõe é se esta divisão é fruto de alguma formação recente da sociedade brasileira. Ou se, de outra forma, foi revelada por um contexto recente, mas definida em passado mais distante. Se a segunda hipótese for pertinente, em qual momento? Quando podemos começar esta história?

Minha aposta é que esta história tem seus momentos fundamentais ainda no século XIX. Assim como na Polônia, as últimas eleições no revelaram mais do que uma fotografa recente de como as regiões brasileiras se comportam. E sim, foram situações propícias ao reaparecimento de características que estavam escondidas, mas não mortas, desde um passado mais distante do que as últimas décadas desta história.  

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Vinícius Müller  é doutor em História Econômica pela USP e professor do Insper.