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Ingmar Bergman: o homem e o artista

A vida e obra do cineasta sueco são marcadas por momentos brutais de sinceridade.

Por Estado da Arte
Atualização:

por Miguel Forlin

  Apliquei o coração a esquadrinhar e a informar-me com sabedoria de tudo quanto sucede debaixo do céu; este enfadonho trabalho impôs Deus aos filhos dos homens, para nele os afligir.

Eclesiastes 1:13

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No seu famoso ensaio sobre Ingmar Bergman - intitulado O Percurso Sombrio -, Woody Allen escreveu:

Ele é rápido; os filmes custam muito pouco e o seu bando de colaboradores regulares consegue improvisar uma grande obra de arte em metade do tempo e por metade do preço que a maioria dos cineastas gasta para montar algum cintilante desperdício de celuloide. Além disso, ele escreve os próprios roteiros. O que mais se pode querer? Sentido, profundidade, estilo, imagens, beleza visual, tensão, fluência narrativa, velocidade, economia, fecundidade, inovação, um diretor de atores sem igual.

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Nessa série de atributos mencionados por Allen, é possível notar muitas das características que tornaram Bergman um dos principais nomes do cinema moderno. Temas, experimentos formais e qualidades estéticas costumam ser os aspectos mais destacados de uma obra definida pela profundidade psicológica e destreza técnica.

No entanto, se muito é dito sobre os filmes, pouco se fala dos métodos empregados pelo cineasta no período de concepção artística. Ao ler Lanterna Mágica - uma de suas autobiografias -, acima das situações narradas, é a sinceridade de Bergman que impressiona o leitor. Em certos momentos, ele confessa pensamentos e desejos que a maioria das pessoas nunca teria coragem de admitir. A conhecida tentativa de assassinar a própria irmã - planejada ao lado do irmão quando os dois ainda eram crianças - é somente um dos atos pecaminosos que marcaram a sua vida e que ele relembra sem nenhum tipo de falsidade. O sujeito que casou com cinco mulheres, traiu diversas vezes e foi negligente com os filhos é um homem ciente das suas ações e dos males que causou. Em nenhum instante busca aliviar o fardo que carrega há anos ou minimizar as consequências de sua conduta. Inclusive, no documentário Bergman e a Ilha de Fårö, ao ser perguntado sobre o seu papel como pai, ele afirma que ter peso na consciência é egoísmo, já que a sua dor sempre será pequena perto do tormento que gerou.

Se por um lado, isso remete a eventos particulares que não cabe a nós julgar, por outro, nos revela muito sobre o homem e o artista. Em vários de seus filmes, existe uma tensão originada pelas coisas que não são ditas e se escondem sob gestos e olhares. Seja pela própria estrutura da realidade, seja pela força das convenções, os personagens do diretor armazenam agonias, aflições e rancores. Eles sentem medo de dizer o que pensam e não conseguem verbalizar o universo de sensações que alimentam internamente. Como não poderia deixar de ser, a consequência desse silêncio são confrontos dolorosos e incompletos. Entretanto, ao colocá-los em situações limítrofes, Bergman sempre os obriga a articular discursos e expor os seus verdadeiros sentimentos. Esses são os momentos em que há uma explosão de palavras, lágrimas e sinceridade. Naturalmente, é só depois desses embates genuínos que se delineia a esperança de uma redenção.

Tecnicamente, essa imposição do diretor se dá através do uso de monólogos e close-ups. Enquanto os primeiros funcionam quase como fluxos de consciência ininterruptos, os segundos expõem os atores a um perscrutamento imagético feroz. São instantes tão sinceros que é muito comum nos sentirmos envergonhados, como se estivéssemos tendo acesso a uma intimidade proibida. Já psicológica e moralmente, esses momentos de revelação interior são antecedidos por um exame de consciência quase infalível. Desde muito jovem, Bergman foi atormentado pela ideia da morte. Dos filmes que abordam o tema diretamente, dois (O Sétimo Selo Morangos Silvestres) foram realizados quando o diretor tinha apenas 39 anos de idade. Em diversas vezes, ele afirmou ter pensado na questão e chegado a conclusões diferentes. Numa perspectiva metafísica, há dúvidas sobre o que ela encerra e inicia. Mas a partir de um olhar retrospectivo, ela joga luz sobre a vida, indica onde estão o Bem e o Mal e separa as coisas supérfluas das que realmente importam.

Bergman sempre foi um cineasta moral. Entre a sua vida e obra, existe uma nítida percepção do certo e errado. Ao se colocar diante do absoluto - Deus e, numa escala menor, a inevitabilidade da morte -, o cineasta enxerga a existência com os olhos de quem já viveu tudo o que há para viver (a cena em que as personagens de Gritos e Sussurros são chamadas pela irmã já falecida é um exemplo perfeito dessa confrontação diante do fim). Assim, os seus filmes são análises complexas da condição humana. Eles partem da única posição que nos permite enxergar a vida com um pouco mais de clareza. E descobrir o mundo é conhecer as alegrias e, principalmente, as angústias que o fundamentam. "Tudo é vaidade", diria o autor do livro de Eclesiastes, ao passo que Kurtz, de Coração das Trevas, suspiraria: "O horror, o horror".

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Todavia, a visão de mundo de Bergman não nasce apenas de uma inspeção objetiva da realidade, mas também de um auto-conhecimento prodigioso. É por mergulhar no seu eu mais profundo que ele é capaz de ver do que os humanos são capazes. Conhecendo os seus anjos e demônios interiores, ele percebe a ambiguidade que nos define. É como o prelúdio de Chopin tocado em Sonata de Outono (uma dor constante quebrada por instantes de leveza) e as teclas do piano: a alternância entre o branco e o preto. Nesse sentido, ele segue a tradição literária do já mencionado livro de Eclesiastes e As Confissões, de Santo Agostinho. Vida pessoal e criação artística se misturam para gerar um híbrido cuja base nunca deixa de ser a sinceridade completa.

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Curiosamente, partindo de uma interpretação superficial, essa pode parecer a trajetória individual de um único homem. Porém, se tivermos a coragem de aprender o que é ensinado, veremos que nos é fornecida uma rara lição de maturidade. Se durante a vida inteira, mesmo sendo capaz de distinguir os atos ruins dos bons, Bergman tinha dificuldade em evitá-los, ele nunca deixou de condenar as ações egoístas e malévolas nos seus longas. Se foi derrotado na batalha contra as forças da existência, em muitos filmes nos mostrou que, além de não ser possível escapar da realidade (Monika e o Desejo, por exemplo, deixa claro que idílios românticos têm data de validade), é preciso vencê-la, se não as tentações se impõem e as fraquezas humanas falam mais alto (a infidelidade, tão recorrente em sua biografia, sempre é abordada negativamente nas obras). E se a prudência foi tantas vezes esquecida na sua história pessoal (ele afirmava ter se tornado adulto apenas com 58 anos), no seu corpo de trabalho, ela sempre foi a promessa de que, caso fosse exercida mais vezes, evitaria muitos sofrimentos. Obviamente, na situação particular de Bergman, o exame do universo cobrou um preço caro demais. Contudo, o conselho está aí para quem tiver o desembaraço de ouví-lo. Ou melhor, para quem, ao enfrentar o mundo, exibir a bravura que também é exigida na hora de investigá-lo. Não há desculpas. Fugir disso é a mesma coisa que fazer um voto de ignorância e covardia.

Miguel Forlin é crítico de cinema e colabora com diversas publicações da área.

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