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Independência ou morte? Algumas indiretas do passado para (des)entender o presente

Em face dos novos desafios que recairão sobre o Brasil e os Brasileiros, como refletir sobre nossa Independência, nosso povo e nossa história?

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Por Estado da Arte
Atualização:
 

 

por Isabelle Anchieta de Mello

 

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O Brasil encontra-se em um momento de inflexão histórica, dessas em que se deve escolher entre continuidades ou rupturas; ou, quem sabe, fazerem-nos crer em uma aparente ruptura para manter tudo como era antes. Não sem razão me vem à mente a imagem do quadro 'Grito do Ipiranga'[1]do pintor paraibano Pedro Américo -para retratar a Independência do Brasil de 7 de setembro de 1822.

Não vou ater-me aqui aos já conhecidos erros históricos ou idealizações -mesmo porque, penso eu, toda imagem, da mais prosaica à mais institucional, tem sempre um quê de falsificação. Nesse sentido, parece-me equivocado desqualificar uma pintura nacional com a régua histórica. As próprias deformações são, elas mesmas, interessantes informações para compreender a mentalidade de uma época e a realidade que se deseja criar ou recriar.

O que mais me intriga, realmente, é por que algumas imagens são adotadas pelo imaginário coletivo e outras não. Ganham a adesão das pessoas e dos historiadores. Repetem-se ao longo do tempo, fixando-se na memória social. Exemplo disso é que, mais de quarenta anos antes do célebre quadro de Pedro Américo, foi encomendada pelo Senado Imperial ao francês François-René Moreaux[2]a tela "A Proclamação da Independência"[3]. Nela havia a presença do "povo" participando da Independência, celebrando-a junto a D. Pedro I. Ainda que esses estivessem mais próximos de camponeses europeus do que dos negros, mulatos e índios brasileiros, ele, o povo, estava ali no quadro do francês. A despeito disso, a imagem não ecoou nem ganhou fama como a do pintor brasileiro.

Por que será? Por que a imagem da Independência sem "povo" no Brasil foi a escolhida pela memória social para nos representar? Bom observar que, naquele contexto, três alternativas apresentavam-se aos brasileiros, como nos lembra o historiador José Jobson Arruda[4]. Eram elas: "1. Levar o país de volta à situação de colônia, como queriam as Cortes; 2. Apoiar Dom Pedro I e chegar a uma independência pacífica, com a instalação de uma monarquia; 3. Proclamar a República com o apoio popular"[5]. Venceu a segunda opção, arquitetada pelo ministro do Reino e Estrangeiros, José Bonifácio de Andrade e Silva.

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Por isso, nem o fato de o cavalo estar no lugar da mula e de o rio Ipiranga não passar por perto impediram que a tela de Pedro Américo dissesse mais da nossa independência do que a da independência 'com povo' do francês.Essa, sim, seria uma grande deformação de nossa independência, porque os brasileiros sempre passaram longe dos processos decisórios. Enganam-se, no entanto, os que acreditam que isso se deu por negligência, indiferença e apatia dos brasileiros -que supostamente olhavam de esguelha os acontecimentos. Muito pelo contrário. A Inconfidência Mineira é prova do quanto havia na população um profundo e apaixonado desejo de independência e de mudança, sufocado violentamente pelos governantes.

Essa, infelizmente, é uma constante no nosso país: o desejo da população brasileira de participar dos rumos do país e a indiferença de seus representantes a essa vontade democrática soberana. Nunca fomos uma democracia. O verniz das "Diretas Já" e da "Constituição de 1988", já há algum tempo, desgastou-se. Estamos novamente diante de três opções, muito parecidas com as que tivemos em 1822.

Se não é possível prever qual caminho iremos tomar agora, pode-se dizer que, naqueles "entonces", evitou-se a transição com a participação da maioria, ou ao menos de uma maioria ilustrada, e depositou-se em um integrante da própria corte portuguesa, Dom Pedro I, essa liderança. Um traidor de Portugal? Dos seus interesses exploratórios na colônia? Ou uma estratégia de simular uma mudança para manter tudo como estava antes? Como nos lembra Rubens Ricupero, tratou-se de uma "independência que, afinal, seria a única a manter a forma monárquica de governo e ter à sua frente não só um príncipe de sangue, mas o herdeiro legítimo do trono da metrópole"[6].

No entanto, havia também em Dom Pedro I, um afeto genuíno pelo país e um desejo oscilante de dar-lhe sua independência. Já em 6 de agosto de 1822, um mês antes do suposto grito do Ipiranga, Dom Pedro afirma no Manifesto aos Governos e Nações Amigasque há "uma vontade geral do Brasil que proclama à face do universo a sua independência política".  Em seguida, denuncia a intenção das cortes de "restabelecer o sistema colonial". Segundo Ricupero, "essa ambiguidade é inseparável do momento de transição e incerteza que atravessa o país. A validade do conceito da coroa bifronte continua a fundamentar a ação do Brasil, descrita não como uma insubordinação, mas legítima defesa do estatuto de Reino Unido, livremente outorgado por Dom João"[7].

Deve-se destacar que Dom Pedro I assume um país deixado em péssimas condições econômicas por seu pai Dom João VI. "Os cofres foram esvaziados e o ouro levado para Portugal. Nas províncias, crescia a agitação entre brasileiros e portugueses. Como regente, Dom Pedro começou agindo com moderação: restringiu as despesas, diminuiu os impostos e equiparou os militares brasileiros aos portugueses. As Cortes de Lisboa não gostaram da sua política"[8]. Tanto que a Corte lhe dá o ultimato e o ameaça com o envio de tropas militares. A ameaça precipitará a famosa carta assinada por Maria Leopoldina, sua mulher, e por José Bonifácio, o ministro, recebida pelo príncipe durante a viagem dele a São Paulo, alertando-o de que era chegado o momento da decisão.

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Sua reprodução me parece emblemática. Diz: "Senhor, o dado está lançado em Portugal, não temos a esperar senão a escravidão e horrores". Eis a questão: Independência ou Morte?

Isabelle Anchieta é doutora em Sociologia pela USP, jornalista, mestre em Comunicação Social pela UFMG. Recebeu prêmio como Jovem Socióloga brasileira pela Associação Internacional de Sociologia com apoio da UNESCO.

 

[1]Obra intitulada "Independência ou Morte", também conhecida como "O Grito do Ipiranga", realizada por Pedro Américo na Itália, em 1888. O quadro encontra-se, atualmente, no Museu Paulista da USP, mais conhecido como Museu do Ipiranga.

[2]Pintor nascido na França em 1807, François-René Moreaux muda-se para o Brasil em 1838. Em 1856, funda com outros artistas o Liceu de Artes e Ofícios. No ano seguinte, funda a Galeria Contemporânea Brasileira.

[3]A obra encontra-se hoje, no Museu Imperial de Petrópolis, Rio de Janeiro.

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[4]José Jobson Arruda, Toda a História: História Geral e História do Brasil. São Paulo: Ática, 2014, p. 358,

[5]Idem.

[6]Rubens Ricupero, "O Brasil no Mundo". In: Crise Colonial e Independência, vol.1. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011, p.139.

[7]Idem, p. 140-141.

[8]José Jobson Arruda, Toda a História: História Geral e História do Brasil. São Paulo: Ática, 2014, p. 358.

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