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Entre os juízes e os militares, desde o início.

É preciso superar o embate crônico entre os bacharéis, que usam seu prestígio para manter privilégios, e a instituição militar, que se arvora em guardiã da ordem.

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Por Estado da Arte
Atualização:

por Vinícius Müller

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Entre as tantas dificuldades que caracterizaram nossa história ao longo do século XIX, uma delas, estrutural, vinculava-se aos desafios que a Monarquia enfrentava para organizar sua burocracia. Não apenas pelo reduzido número de indivíduos qualificados, mas principalmente porque tal burocracia deveria formar 'o corpo' do Império, garantindo uma ação lógica e coerente em relação aos motivos e objetivos da monarquia. E tais objetivos voltavam-se, em suma, à organização territorial - e, portanto, das fronteiras -, e à manutenção da escravidão.

A complicação repousava, no primeiro caso, no modelo de organização política e administrativa do Império, já que um país geograficamente tão amplo exigia um arranjo de difícil ajuste entre o governo central, sediado no Rio e Janeiro, e suas inúmeras e distantes províncias. As divisões de responsabilidades entre eles, inclusive as fiscais, tornava tal ajuste um dos itens de intensa disputa entre os grupos políticos, organizados sob os liberais e os conservadores, defensores, respectivamente, da ampliação das autonomias provinciais e da centralização em mãos do governo imperial.

Após alguma insinuação liberal durante a década de 1830, a explosão de movimentos localistas e separatistas criou o ambiente necessário a uma revisão do arranjo imperial voltada à centralização política e administrativa a partir do fortalecimento do poder monárquico, principalmente após a ascensão do jovem imperador Pedro II. Portanto, mais do que formar um quadro burocrático capaz de enfrentar os desafios do governo, o Império buscava formar um grupo que, coeso e com uma linguagem comum, pudesse estruturar a espinha dorsal que sustentaria o Império e seu projeto de unidade e centralização. A origem dos membros desta burocracia deveria, então, ser a mesma, tanto socialmente como em relação à formação educacional. Isso aceleraria o processo de consolidação do Estado imperial, como tornaria mais fácil a criação de um esprit de corps que garantiria uma linguagem, procedimentos e matriz mental comuns.

Tal papel coube, na melhor tradição lusitana, aos bacharéis em Direito, que formaram esta estrutura central que viabilizou a sedimentação do governo imperial e, no limite, a consolidação do Estado Nacional brasileiro. Bacharéis que, ademais, se instalaram nas entranhas da burocracia brasileira, se transformando em uma quase-classe que, de dentro do Estado definem seu espaço e papel social. Além deste processo de construção da burocracia nacional por meio da ascensão dos bacharéis em Direito, tão bem descrito por José Murilo de Carvalho em A Construção da Ordem/Teatro das Sombras (Ed. UFRJ/Relume Dumará, 1996), o Império ainda pôde contar com certa cooptação das elites regionais, potenciais adversários do projeto de centralização, já que as escolas que formavam e forneciam tais bacharéis localizavam-se em São Paulo e Recife. No caso paulista, suas elites, tradicionalmente liberais, tiveram seus filhos bacharéis em Direito amplamente alocados na burocracia e nos cargos públicos próximos ao Imperador. Pouco mais de 20 por cento dos ministros do Império na década de 1840 - período da consolidação do governo de Pedro II - eram paulistas, mesmo que São Paulo representasse pouco mais de 5 por cento da riqueza e da população do país. Quase todos eles eram oriundos da Escola de Direito do Largo São Francisco.

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Contudo, tamanho poder dos bacharéis em Direito, refletido tanto na ocupação dos ministérios quanto no prestígio do Poder Judiciário, não esteve sozinho na formação do Estado Nacional brasileiro. A própria essência do Estado Nacional, em seus conceitos centrais na versão weberiana, passa pela monopolização do uso da força física e, portanto, pela estruturação das Forças Armadas. E as oscilações da história reservaram às Forças Armadas - destacadamente o Exército - um momento de consolidação e ascensão de seu prestígio ainda durante o período monárquico. A Guerra do Paraguai, entre 1865 e 1870, foi o palco necessário para a consolidação do Exército, após décadas de prestígio duvidoso e disperso, principalmente, pela existência e atuação da Guarda Nacional. A vitória brasileira na Guerra, em 1870, é, não por coincidência, o marco mais comumente usado como início da crise do Império.

A questão militar, brilhantemente analisada pela professora Wilma Peres Costa em A Espada de Dâmocles (Hucitec/Ed. Unicamp,1996), que opôs o Exército ao Império a partir do fim da Guerra do Paraguai, escondia, mais do que o mal-estar causado pela não aceitação por parte do imperador de algumas demandas circunstanciais dos militares, um problema de fundo e estrutural da formação do Estado brasileiro. Se, de fato, a formação do Estado moderno caracteriza-se pela monopolização do uso da força pelo Estado e por seu braço burocrático-armado, a escravidão e sua explícita autorização do uso da violência em espaço privado é uma ameaça à função e ao lugar das Forças Armadas. Desta forma, aquilo que outros membros do Estado não resolviam, e mesmo, muitas vezes defendiam e justificavam, era entendido pelo Exército como um obstáculo à sua consolidação e, por consequência, à consolidação do próprio Estado. Não à toa, os itens que pautaram o caminho e participação dos militares após a Guerra do Paraguai eram a recusa em aceitar a continuidade da escravidão, a defesa da libertação dos escravos e o engajamento dos libertos ao Exército, o autodefinido papel de modernizador do país e, finalmente, o republicanismo. Vale lembrar que esse papel do Exército, como definidor do ethos fundamental do Estado era, à época, testado pela experiência alemã, unificada em 1871 sob uma forte presença do Exército prussiano e seu comandante Otto Von Bismarck.

As divergências entre os militares e os federalistas, ambos republicanos, logo após a queda da Monarquia ainda no final do século XIX, revelam mais do que uma disputa pelo poder. Revelam, na verdade, uma disputa entre duas correntes e duas formações diferentes do próprio Estado Nacional. Por um lado, o Exército, republicano e já amparado pelo positivismo. Por outro, os federalistas, republicanos sob uma forte influência norte-americana. Porém, cabe o destaque de que esses últimos eram majoritariamente paulistas, enriquecidos pela ascensão do café e intelectualmente formados nos métodos, temas e linguagens jurídicas. Vale lembrar que os três primeiros presidentes civis da República Brasileira (Prudente de Morais, Campos Sales e Rodrigues Alves), que governaram após cinco anos de governos militares (Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto) eram paulistas, cafeicultores e advogados.

As mesmas oscilações da história, em eterno combate entre as mudanças e as continuidades, fizeram, e ainda fazem, com que este embate entre a poderosa burocracia formada pelos bacharéis em Direito e o Exército, seja de tempos em tempos atualizado. Cada qual com suas idiossincrasias, ambos refletem, em última análise, as próprias indefinições institucionais e dos fundamentos do Estado brasileiro. Podemos, certamente, buscar na lamentável experiência de 1964 as justificativas, as origens e os paralelos históricos que nos ajudam a entender a atual tensão. Porém, as respostas não estão necessariamente lá. Estão em uma trajetória que remonta a própria formação do estado brasileiro ao longo do século XIX. E que se repetiu em inúmeras outras ocasiões, como na ascensão e na queda de Vargas, na posse e Juscelino e, claro, em 1964.

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Desta forma, as raízes deste embate são maiores e mais antigas. Portanto, mas difíceis de serem solucionadas. Contudo, ou superamos tal embate, fundando novos valores centrais para o funcionamento do Estado Brasileiro, ou ficaremos reféns das indefinições institucionais derivadas desta disputa. De um lado, um poder encrustado no Estado e que usa seu prestígio e sua tradição para, segundo seus críticos, manter privilégios pessoais indefensáveis aos seus membros. De outro, a instituição militar que, com seu particular republicanismo, associado à sua tradicional hierarquia e seu pretenso nacionalismo, se arvora no papel de guardião da ordem. Ambos precisam ser superados em seus termos até aqui revelado Para o bem dos dois. E, claro, para o bem do país.

Vinícius Müller é doutor em História Econômica pela USP e professor do Insper.

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