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Como pensamos sobre a religião?

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Por Estado da Arte
Atualização:

Por Pedro Sette-Câmara

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No começo de O Reino, livro em que conta o período em que foi católico, o escritor francês Emmanuel Carrère se pergunta como pôde acreditar nas teses absurdas em que o catolicismo se baseia. Um homem nasceu de uma virgem, e depois ainda ressuscitou. Há exatamente uma semana (escrevo este artigo sete dias depois da Quinta-Feira Santa), muitas pessoas que talvez concordem com Carrère afastaram-se de seu trabalho por causa dessa crença: um tremendo efeito prático que se repete todos os anos, cerca de quarenta dias após a primeira Lua cheia depois do começo do outono (no hemisfério sul). Duvide-se de Cristo, mas não da folga em seu nome.

A religião também é frequentemente usada como metáfora. Quando se diz que tal coisa é como uma religião, quer-se dizer que alguém é inflexível em relação a certas crenças ou práticas. Se são crenças ou práticas que aprovo, trata-se de um devoto; se as desaprovo, sem dúvida é um fanático, talvez esquisito, quiçá perigoso.

Fala-se ainda, e muito a sério - academicamente a sério, harvardianamente a sério - sobre as religiões seculares, as religiões civis. Sim, é verdade que a Revolução Francesa afirmou o Ser Supremo (aguardamos ainda manifestações do Ser Supremo sobre a Revolução Francesa) e formalizou ritos civis. Também é verdade que as nações mais jovens, formadas no século XIX, quiseram criar seus ritos, uniformizando a educação, colocando as crianças para cantar o hino todos os dias, e que todas as nações ritualizam procedimentos meramente burocráticos, como posses de cargos, trocas de mandato. É verdade que, principalmente com urnas eletrônicas, esses procedimentos podem ser verdadeiramente misteriosos; mas não era bem disso que eu estava falando.

Ou era, em certa medida. As questões com que esbarramos ao examinar o senso comum sobre a religião são de duas ordens: como já mencionado, a adesão a certas teses, consideradas absurdas e extraordinárias até por seus defensores, e, como sugerido, uma organização, de multidões grandes e pequenas, espontânea ou deliberada, em torno de certas ideias, ou de certas pessoas.

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(A parte do mistério e da urna eletrônica é mais do que uma insinuação de fraude; ainda existe, de fato, algo de misterioso no contágio de opiniões e de motivações que leva enormes números de pessoas a aderir a candidatos - candidatos esses aos quais, como no Brasil, elas são constrangidas a considerar. Algo tão misterioso que o fraudador se sente compelido a agir.)

E quando se fala de multidões ou quando se faz parte de uma multidão, ressurgem as alusões religiosas. Não creio, ao contrário do que talvez o leitor espere, que haja algo de equivocado nisto tudo. Penso que todas essas comparações relacionam-se com uma intuição correta, que é aquela que faz com que não percebamos que "religião secular" seria uma contradição em termos, um oximoro. Não é na medida em que, por religião, pretende-se indicar não a adesão a certas teses consideradas absurdas, mas a própria atitude de adesão, seja a teses, a objetos abstratos como a nação ou um ideal, adesão essa que em determinado momento renunciaria à crítica (você acreditaria que o adepto crítico de uma religião é verdadeiramente seu adepto?). Assim religião e mistificação se confundiriam, e as duas dimensões dessa atitude - intelectual e volitiva - estariam reunidas no mesmo gesto.

Porém, mesmo essa visão pode pecar por ser excessivamente moderna.

Se adotarmos a visão de René Girard, a cultura humana surgiu de um jogo entre proibições e rituais. O objetivo das proibições era evitar a imitação, a perda de identidade, a violência coletiva; o objetivo dos rituais era controlar a imitação, a perda de identidade, a violência coletiva. Tente imaginar uma crise coletiva dentro de um grupo de hominídeos de 100 a 140 membros, todos desprovidos de linguagem, e que essa crise é resolvida porque a violência é dirigida para um único membro. A catarse produzida é maravilhosa, e a diferença entre nós e aqueles hominídeos é que nós vemos apenas uma catarse, e eles veem uma ação divina. (O que não impede que nós modernos, tenhamos outras maneiras de nos equivocarmos quanto a esses mesmos pontos.)

A religião, segundo Girard, surgiria como uma tecnologia de controle da violência, mas sem que o pajé fosse um grande cínico, arguto como um desconstrucionista e manipulador como um ilusionista. Todos acreditavam na mesma ilusão, aderindo a teses não como um católico adere aos artigos do Credo, formulados após muitas disputas, mas aderindo a uma certa experiência coletiva, imitada muito antes de ser formulada.

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A ideia de que a religião nasce como a imitação empírica, provavelmente anterior à linguagem, de uma crise primeva que impediu o colapso de uma comunidade inteira, e que aliás só depois começou a ser formulada em narrativas, ou mitos, pode ser uma chave para entendermos os problemas apresentados na primeira parte deste texto: a religião fica voltando, como um termo de comparação, a esferas que ninguém consideraria propriamente religiosas. Ou até a esferas que gostariam de definir-se pelo secularismo - que, no senso comum, é o oposto da religião, seja lá o que sejam um e outro.

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Teríamos aí também uma chave para entendermos porque se espera que a vida secular produza efeitos que se atribuía à religião, como um sentido de comunidade, e até de identidade comum. Porém, claro, este seria apenas o começo do problema. Se um primitivo duvida de seu rito, se acha que as proibições são besteira, ele pode realmente colocar em risco a sua pequena comunidade. Por outro lado, se inventarmos uma letra parodiando o hino nacional e a preferirmos na hora de cantá-lo na escola, o país continuará existindo.

A vida secular parece viver nesta contradição, porque ela seria justamente isto: não precisar crer em algo transcendente como uma "nação" para esperar que as instituições de controle da violência (polícia, poder judiciário) funcionem. Contudo, as instituições do Estado secular não param de se perguntar como emular unidade, como fazer com que as pessoas demonstrem a sincera adesão a certos valores.

Não basta ser ateu em relação ao Estado secular, dizendo-lhe: você é apenas um mecanismo de controle da violência, melhor do que os demais, mas nem por isso transcendente. Temos ainda ideólogos, de direita e de esquerda, que, como velhos pajés sinceramente iludidos, pedem que associemos nossa adesão ao Estado-nação, ou a mecanismos globais de controle, a algo vago, intangível, para fora deste mundo. E temos, claro, cínicos, argutos como desconstrucionistas e manipuladores como ilusionistas.

Temos, sobretudo, poucos que digam: eu mesmo tenho essa atitude religiosa, de tipo primitivo, que enxergo nos outros; sou capaz de aderir religiosamente a praticamente qualquer coisa, porque é possível desejar a verdade de qualquer coisa, recusando-se respeitosamente a criticá-la; apontar todo o meu aparato crítico para um lado, mas não para outro (principalmente o próprio). É o impasse secular, que está intimamente ligado ao problema sem fim da religião.

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Pedro Sette-Câmara é tradutor e doutorando em literatura comparada na UERJ.

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