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Beyoncé vai ao Louvre

Onde estaria o rebaixamento das culturas africanas na arte europeia, denunciado pela união improvável de militantes e magnatas da indústria cultural?

Por Estado da Arte
Atualização:
 

por Rodrigo de Lemos

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Assim como limousines e iates de luxo são parte do imaginário que os pobres se fazem da existência dos ricos, o Louvre simboliza a cultura para quem a vê de longe, como algo que se visita durante uma viagem à Europa.

Trata-se do lugar atrativo por excelência aos ricos do Novo Mundo. Não foi diferente com a cantora pop americana Beyoncé e com um rapper de nome Jay-Z, seu marido. Como parvenus num romance do século XIX, ambos mobilizaram sua influência e seus recursos para fechar o antigo palácio dos Valois. Gravaram ali um videoclipe em que celebram o próprio sucesso comercial, aproveitando a ocasião para repreender Leonardo e David por não se terem antecipado em 500 ou 200 anos à política de identidades. Se só há o que louvar no êxito social e econômico de pessoas cujos antepassados foram trazidos às Américas em condições bárbaras e que ainda estão sujeitas a padecer de discriminações injustificáveis, o entusiasmo não deveria encobrir o quanto há de esquemático na ideia, sugerida no videoclipe, de uma exclusão sistêmica e implacável dos negros na arte europeia ou de sua representação reiterada em posição de subserviência, como sugerem os closes nos escravos de As Bodas de Canaã, de Veronese.

A escolha mesma do Louvre já trai essa incompreensão fundamental. Suas coleções recobrem o imenso período que vai da Antiguidade ao Romantismo (isso sem falar das coleções de arte não-ocidental como as da Oceania, do Islã e da própria África, o que o videoclipe escolhe significativamente não mostrar). Ainda que a África estivesse longe de ser uma quase que total desconhecida para a Europa como as Américas puderam ser durante boa parte desse longo período, as relações entre os dois continentes durante ele foram grosso modo mais limitadas do que vieram a ser posteriormente, o que pode contar para explicar certa irregularidade na representação de negros nas telas.

No caso francês, ainda que o Primeiro Império Colonial já tivesse sua Companhia Real da África, foi no Segundo Império Colonial, a partir da tomada de Argel, em 1830, que a presença da França se fará massiva no continente africano. A empresa colonial está associada a um movimento pernicioso na sociedade europeia, em que sentimentos de superioridade racial se seguiram facilmente à constatação de uma predominância econômica ou militar. Ocorre que artistas e intelectuais não são simples delegados da sociedade; a reflexão e o descentramento quanto ao que se pensa majoritariamente é definidora de seu lugar entre os homens (tão mais numa época de Romantismo ascendente), e as consequências na arte dessa instalação francesa na África não se fizeram esperar. Elas surgiram nas obras de pintores como Eugène Fromentin, que se notabilizou ao retratar com grande sensibilidade as paisagens e os costumes do Norte da África, ou como Eugène Delacroix, cujas pinturas põem em valor a vida das tribos berberes, como um lembrança nostálgica dos valores de heroísmo e de nobreza relegados na sociedade europeia em vias de modernização.

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É ainda mais tardiamente que os franceses se embrenharão na assim chamada África Negra, a partir do Segundo Império (1852-1870) e sobretudo na Terceira República (1870-1940), período posterior àquele coberto pelo Louvre. Máscaras e esculturas africanas marcam então a vida intelectual da Europa, primeiramente como objeto de curiosidade antropológica e como expressão de domínio colonial; logo elas também terão um impacto na própria história da arte do Ocidente. Henri Matisse, Pablo Picasso, Guillaume Apollinaire, André Breton - muitos dos principais vanguardistas europeus colecionavam em Paris os fetiches (como diz Apollinaire) oriundos da África ou da Oceania não apenas como observadores altivos, mas como artistas que distinguiam neles uma possibilidade de renovação da própria arte europeia. Max Jacob conta famosamente que Picasso teria descoberto a escultura africana no apartamento de Henri Matisse e que, sob o impacto da revelação, teria pintado As Senhoritas de Avinhão, fundando assim o cubismo.

 

Onde estaria portanto o rebaixamento sistemático das culturas africanas na arte europeia, denunciado pela união improvável de militantes e magnatas da indústria cultural? Não se confunde numa mesma crítica a sociedade europeia e sua arte, como se esta fosse o espelho daquela e não seu lugar de reflexão, de autoexame? Por certo, a condição servil do negro foi retratada por toda uma tradição (estudada pela colunista do Estado da Arte Laura Ferrazza) que compreende Veronese, Tiepolo e Watteau, além de Velázquez e de Manet. Resta que, como a opinião progressista não deixa de lembrar quando obras de arte contemporânea são censuradas por conservadores, representar um ato ou uma condição não equivale a justificá-los, e mesmo a escravidão está longe de esgotar a gama de relações entre a arte europeia e a figura do negro.

É claro que se poderia perguntar por que o Louvre aceitou ser o teatro de uma interpretação da história da arte tão parcial. A fagocitação da cultura pelo entretenimento vai tão longe que antigas elites culturais só desejam se fazer sagrar pelos novos donos do poder simbólico que são as eminências da indústria do entretenimento. Em janeiro deste ano, a Casa de Rubens, na Antuérpia, ostentava orgulhosamente um Tintoretto - menos por ser um Tintoretto do que por haver pertencido a David Bowie, cujo rosto disputava espaço com a própria tela nos cartazes de divulgação. Em julho deste ano, a Sotheby's, de Londres, inaugurará uma mostra com Cranach, Leonardo e Rubens cujo chamariz será a curadoria da ex-Spice Girl Victoria Beckham. Ela confessa com ingenuidade ter-se apaixonado pelos Velhos Mestres durante uma visita à Frick Collection, de Nova York, há não mais que um ano.

David Bowie sempre foi uma figura sui generis na indústria cultural, e seu gosto pela pintura antiga ou por arte de vanguarda não surpreendem. Victoria Beckham ainda se serve de seu estado de antiga celebridade adolescente para se improvisar como historiadora de arte ad hoc. São as novas elites buscando os apanágios das antigas, coisa velha como o mundo. Há ao menos nelas algo como um respeito quanto a uma tradição cultural que lhes é infinitamente transcendente, uma deferência que é em tudo diversa daquela relação de ressentimento que o casal Beyoncé e Jay-Z estabelece com a arte do Louvre como se se tratasse do nec plus ultra da subversão. Um ressentimento a que, de resto, não é estranha a tentação conformista, já que o vídeo não apenas passa em silêncio como celebra o culto ao sucesso à americana - com sua vulgaridade, seu materialismo reles - enquanto veículo de uma redenção racial.

Não é preciso remontar ao radicalismo marxista dos Panteras Negras para perceber que outra forma de relação que não essa mistura de despeito e conformidade pode existir entre as culturas negras e europeias. Um dos acontecimentos intelectuais do século XX, o conceito de negritude, desenvolvido pelo escritor e ex-presidente senegalês Léopold Sédar Senghor, exaltava a África como berço de uma experiência própria, distinta da modernidade ocidental. O prêmio Nobel de Literatura nigeriano Woley Soyinka, criticando o que ele entende ser o determinismo excessivo dessa noção, nem por isso deixa de se irmanar ao próprio Senghor ao valorizar por meio de sua literatura os negros não apenas como simples vencedores da sociedade instaurada pelos brancos; o ser africano, com seus mitos e seus símbolos e seu valores, poderia aportar ao antigo continente do racismo e da exploração colonial algo que ele não tem e que lhe faz falta - algo entrevisto pelos próprios Românticos um século antes. Apesar dessa radicalidade de sua posição quanto a uma experiência genuinamente e espiritualmente negra, Senghor e Soyinka estavam longe de rejeitar simplesmente dois mil anos de arte e de literatura europeia como universalmente racista - daí seu uso do inglês e do francês como línguas literárias, daí também o tom miltoniano que reverbera em vários poemas de Soyinka e o parentesco que Senghor descobre entre a poesia africana e a de um Paul Claudel, autor francês entre os franceses, de resto pouco suspeito de simpatias revolucionárias.

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O fascinante da cultura é que o sentido nesses diálogos entre grandes plumas como Senghor e Soyinka se forja nos detalhes, nas nuances de formulação de questões infinitamente graves e complexas. Essas mesmas nuances não resistem à redução operada frequentemente pelo entretenimento quando esse se apropria dessas mesmas graves e complexas questões, tentado que ele é a tudo simplificar sob o imperativo da difusão comercial e de uma forma de comunicação em que o meio é a mensagem. A ida de Beyoncé e Jay-Z ao Louvre não merece questionamentos porque, conforme as intenções atribuídas a seus críticos por alguns militantes afro, eles seriam negros que incomodam por ocuparem espaços de cultura branca (pelo contrário!), mas porque, enquanto figuras da indústria cultural, estão pouco aptos a se porem acima dos esquematismos que caracterizam parte importante da produção para as massas. Esses esquematismos se relevam e até divertem quando se trata de assuntos frívolos, mas chamam à crítica quando reduzem a slogans e a imagens de impacto os grandes temas de sociedade.

Rodrigo de Lemos é professor na UFCSPA (RS) e doutor em Literatura pela UFRGS.

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