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A laicidade do Estado e a obsessão pela religião

A aprovação de uma “lei da laicidade” no Québec reanima o antigo debate sobre os limites da convivência entre as dimensões religiosa e secular nas sociedades democráticas.

Por Estado da Arte
Atualização:

por Jonathan Goudinho

Vez ou outra, com frequência superior ao imaginado, os domínios religioso e secular se entrechocam no debate público. O capítulo mais recente deste imbróglio contínuo ocorreu em Québec, província francófona do Canadá, com a aprovação da lei que tem o objetivo de demarcar melhor a separação entre Estado e religião. A denominada lei da laicidade do Estado, aprovada no último dia 16 de junho, foi apresentada à Assembleia Nacional por Simon Jolin-Barrette, ministro da Imigração, Diversidade e Inclusão, como cumprimento de uma das principais promessas de campanha do primeiro-ministro François Legault. 

 

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O empenho legislativo pela alegada garantia da neutralidade religiosa do Estado não é pauta nova por lá, com quase duas décadas de debate referente à compatibilidade dos símbolos religiosos com a identidade secular que atualmente molda a experiência social québécoise. Três projetos anteriores fracassaram: os dois primeiros sequer conseguiram sair do papel e o último foi derrubado por liminar que questionava sua constitucionalidade. Dessa vez, a pressão de instituições confessionais e de defesa das liberdades de expressão, consciência e crença não foram suficientes para impedir a aprovação do projeto de lei por 73 votos a 35. 

A partir de agora, funcionários públicos em posição de autoridade estão proibidos de usar símbolos religiosos nas dependências do trabalho, decisão que atinge profissionais como policiais, procuradores, juízes, diretores de escola e professores. Esse é o tópico mais controverso do projeto aprovado, que possui 16 páginas e está sustentado em quatro princípios: 1) separação entre religião e Estado; 2) neutralidade religiosa do Estado; 3) igualdade entre todos os cidadãos; 4) liberdade de consciência e liberdade religiosa. Na lista de símbolos religiosos proibidos estão a cruz dos cristãos, o kipá dos judeus e o hijab dos muçulmanos, por exemplo. Ainda é cedo para avaliar as possíveis consequências da nova lei, caso resista aos recursos já impetrados na Suprema Corte de Québec. Contudo, não é difícil supor que o novo dispositivo jurídico resultará em certo cerceamento da liberdade individual e na fratura da coesão social, justamente em um país que se orgulha de sua abertura à pluralidade.

A decisão política tomada no Québec fomenta uma discussão antiga, existente também no Brasil, onde a presença de símbolos religiosos em repartições públicas já foi objeto de escrutínio legislativo e judiciário. Afinal de contas, por que parece necessária a supressão pública de tais símbolos para garantir a laicidade do Estado? Não faltam argumentos de um lado e de outro. Aquilo que o Ocidente conhece por laicidade é, em geral, interpretado como a separação entre as esferas de poder da política (Estado) e da religião (historicamente, a Igreja Católica). Esse fenômeno é tomado como resultado de um processo maior, mais profundo e um tanto polissêmico: a secularização, tema elementar da Sociologia e das Ciências da Religião, pesquisado e retomado amplamente ao longo das últimas décadas. As raízes mais evidentes desse conflito estão fincadas em solo longínquo, que remonta ao século 18.

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A historiografia demonstra que foi com o advento da Revolução Francesa (1789-1799) que a perspectiva de uma separação drástica e litigiosa entre política e religião tomou forma e ganhou força. Inspirados pelo mito do esclarecimento, os proponentes e teóricos do movimento apresentavam a razão como antagonista da religião. A realização do esclarecimento total implicaria a subtração de todos os elementos religiosos da vida humana [1]. Não é despropositadamente que a sentença do abade de Etérpigny, Jean Meslier (1664-1729), conhecido como o "padre ateu", esteja tão associada ao imaginário da revolução: "o homem só será livre quando o último rei for enforcado nas tripas do último padre" [2]. É dessa leitura que decorre a ideia de laïcité como emancipação em desfavor da religião, interpretação que se tornou a mais popular na opinião pública - a despeito de experiências distintas, como a dos movimentos iluministas britânico e americano [3]. 

O debate engendrado em Québec (e em tantas outras localidades), que culminou na proposição e aprovação da referida lei com considerável apoio popular, reflete em alguma medida aquela ruptura violenta preconizada pela Revolução Francesa. A laicidade do Estado é vista muitas vezes como uma espécie de muro de contenção da religião, para impedi-la de sufocar o espaço público. Este conflito é tonificado pelos desafios contemporâneos enfrentados pelas democracias liberais, inclusive por conta de relações promíscuas entre poder político e poder religioso. O que parece escapar às discussões é a existência de certo fetiche pela religião na argumentação sobre a secularização e, em sentido estrito, sobre a laicidade das estruturas políticas. 

Essa é uma das considerações que faz o eminente filósofo québécois Charles Taylor (1931), que julga necessário redimensionar o lugar da religião nessa querela, sem que seja compreendida como um caso especial no interior das sociedades contemporâneas. Para ele, a interpretação adequada acerca da natureza do Estado laico deve sugerir uma resposta à diversidade de posturas religiosas e não-religiosas - isto é, seculares. É por isso que Taylor argumenta: "o Estado não pode ser nem cristão, nem muçulmano, nem judeu, mas, da mesma forma, também não deve ser nem marxista, nem kantiano, nem utilitarista. [...] Isto não é fácil de fazer; as linhas são difíceis de desenhar e devem ser sempre redesenhadas. Mas essa é a natureza do empreendimento que é o Estado secular moderno. E que melhor alternativa existe para democracias diversas?" [4].

Charles Taylor não está sozinho nessa problematização, fazendo coro a outra tradicional interpretação sobre o fenômeno, especialmente como delineada pelo sociólogo da religião espanhol José Casanova (1951). Escapando da armadilha de afirmar meramente o declínio e a privatização da religião, Casanova assinala que a secularização faz referência não mais a uma simples perspectiva crítica à presença da religião, mas ao contexto no qual sobrevivem as diferentes visões de mundo nas sociedades contemporâneas. "Estudar que novos sistemas de classificação e diferenciação emergem dentro desse mundo secular e que novo lugar a religião terá, se tiver, dentro do novo sistema diferenciado, é precisamente a tarefa analítica da teoria da secularização" [5], sentenciou o professor da Georgetown University em seu clássico Public religions in the modern world

Os subsídios oferecidos pelas argumentações de Taylor e Casanova são pertinentes para a reflexão sobre as tensões entre os domínios religioso e secular no debate público, motivo pelo qual devem ser sempre revisitadas. Diante disso, o que movimentos como o empreendido em Québec parecem não conseguir absorver adequadamente é que aplicar sanções, como a proibição do uso de símbolos religiosos por funcionários públicos, não soluciona aquilo que é aparentemente um problema: a incômoda intromissão da religião na vida secular. Na verdade, acaba por adensar o conflito, em virtude das combativas reações aqui e acolá que se sucedem infinitamente.  

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Se as leituras de Charles Taylor e José Casanova são acertadas, religioso e secular assumem agora o mesmo lugar de disputa das mentalidades no debate público, não havendo mais condições prévias de legitimidade. Afirmar a secularização da sociedade e a laicidade do Estado, portanto, implica o complexo exercício da aceitação de novas e múltiplas disposições de crença, religiosas ou não. E isso, sem perder de vista aquilo que foi sublinhado pelo próprio Taylor: "a religião permanece inerradicável no horizonte da irreligião" [6]. O desafio está posto.

Jonathan Goudinho é jornalista e mestre em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Pesquisador do Laboratório de Estudos em Religião, Modernidade e Tradição da mesma universidade.

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Notas:

[1] Quando a Revolução Francesa se tornou objeto de pesquisa de estudiosos, não houve muita demora na constatação de que ela própria possuía um forte aspecto religioso, promovendo uma espécie de religião de substituição. Como esclareceu o filósofo político britânico John Gray (2008, p. 13), "as ideologias iluministas dos últimos séculos têm sido em grande medida formas mal disfarçadas de teologia. [...] A própria ideia de revolução como um acontecimento transformador da história se deve à religião. Os modernos movimentos revolucionários são uma continuação da religião por outros meios." Cf. GRAY, John. Missa negra: religião apocalíptica e o fim das utopias. Rio de Janeiro: Record, 2008. Sobre a dimensão religiosa do movimento francês, também cf. DAWSON, Christopher. Os deuses da revolução. São Paulo: É Realizações, 2018.  

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[2] A frase está presente numa espécie de tratado filosófico ateísta escrito por Meslier e encontrado apenas depois de sua morte. Os philosophes Voltaire (1694-1778) e Diderot (1713-1784) adaptaram e popularizaram o verso, que também foi empregado por Jean-François de La Harpe (1736-1803), ex-discípulo dos revolucionários.

[3] A reflexão empreendida pela historiadora norte-americana Gertrude Himmelfarb oferece notável subsídio neste sentido. Cf. HIMMELFARB, Gertrude. Os caminhos para a modernidade: os iluminismos britânico, francês e americano. São Paulo: É Realizações, 2011.

[4] MENDIETA, Eduardo; VANANTWERPEN, Jonathan (Ed.). The power of religion in the public sphere. New York: Columbia University Press, 2011, p. 50-51. O texto de Taylor, Why we need a radical redefinition of secularism, integra a publicação que é resultado do encontro realizado em 22 de outubro de 2009, na The Cooper Union, em Nova York. Charles Taylor, Jürgen Habermas, Judith Butler e Cornel West proferiram palestras individuais e debateram conjuntamente sobre as novas configurações da religião na esfera pública.

[5] CASANOVA, José. Public religions in the modern world. Chicago: The University of Chicago Press, 1994, p. 15.

[6] TAYLOR, Charles. A secular age. Cambridge: Harvard University Press, 2007, p. 592.

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