Foto do(a) blog

Um espaço para a discussão de ideias para nosso tempo

Poesia em Casa - A herança da fratura

O poeta original terá sido qualquer ser ainda fera, o primeiro entre nós a perceber que o perdido, perdido para sempre estava.

PUBLICIDADE

Por Estado da Arte
Atualização:

 

 

 

Por Pedro Gonzaga

PUBLICIDADE

O poeta original terá sido qualquer ser ainda fera, o primeiro entre nós a perceber que o perdido, perdido para sempre estava, e, logo depois, que a língua rudimentar da comunidade em sua boca era a um só tempo o caminho para recuperar as coisas como conceito sensível por dentro e aniquilá-las como experiência real por fora. O poeta primal terá conhecido antes de nós o exílio definitivo das coisas, terá sozinho se despedido da felicidade orgânica e íntegra dos cães e dos pássaros, perplexo diante de um irrecuperável passado, de um esquivo presente, de um semovente futuro. Incapaz de morrer com sua descoberta, como todos os verdadeiros líricos que o sucederão, legará às criaturas humanas a consciência dessa ferida obtusa, renitente, mãe da necessidade de deuses, ritos, danças e tintas, tantas e tão distintas maneiras de, por fragmentação, paliá-la, envolvendo-a em gazes brancas, para vanglória de filósofos denunciadores, que haverão de confundir a testemunha da fratura com o criminoso por detrás dela.

Assim, de arauto do exílio o poeta passará a ser o agente da queda. Convencidos de sua culpa, muitos cairão na armadilha de acreditar na função redentora da arte, engendrando unguentos baratos como versos políticos, versos encomiásticos, versos patriotas, quando a condição primordial do poeta é voltar à ferida, descobri-la, porque é só com uma integral dedicação a ela, por meio de uma aceitação total do que dali sobeja, é que se pode esperar o milagre operado por todo grande poema, mesmo que provisória e inutilmente: sanar a carne com seu poder de acobreado iodo, até que ela volte a se abrir, como da primeira vez na savana que nunca, de fato, conhecemos.

 

Pedro Gonzaga é poeta, tradutor, músico e professor. Doutor em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, é autor de A Última TemporadaFalso Começo e O Livro das Coisas Verdadeiras (Arquipélago Editorial), sua estreia na crônica. Acaba de lançar mais um livro de poesia, Em outros tantos quartos da Terra.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.