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Cultura, comportamento, noite e gente em São Paulo

"Tenho orgulho de ser negra, latina e brasileira", afirma primeira bailarina do Dance Theatre of Harlem, que fará palestra em Harvard

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Por Sonia Racy
Atualização:

Ingrid Silva. Foto: Angela Zaremba.

Dar uma palestra na Universidade de Harvard sobre sua trajetória nunca foi algo que passou pela cabeça de Ingrid Silva. Primeira-bailarina da renomada companhia Dance Theatre of Harlem, em NYC, sabe que o esforço para sair de Benfica, zona norte do Rio, e chegar a ser uma referência no universo da dança foi enorme.  Filha de uma empregada doméstica, ela teve a oportunidade de fazer parte do projeto "Dançando para Não Dançar", na comunidade da Mangueira e hoje lidera duas plataformas: EmpowHerNY e BlacksInBallet, que serão tema de sua fala na 14ª Conferência de Empoderamento e Desenvolvimento de Mulheres Latino-Americanas, dia 17, na universidade americana.

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Para Ingrid, fundar esses projetos - um dedicado ao diálogo entre mulheres e outro a dar mais visibilidade a bailarinos negros - foi essencial para sua atuação como ativista e influenciadora. "Sou uma das pessoas que inspira no balé clássico. Mas eu não sou a única e quero abrir a porta para mais bailarinas que também têm história", afirma. "Estou feliz de estar representando a mulher negra latina e brasileira. Isso também é importante. Nós brasileiros não somos vistos como latinos aqui. Para eles, latino é só quem fala espanhol. Eu tenho orgulho de ser mulher negra, latina, brasileira, tudo junto e misturado", diz.

A pauta racial no Brasil e nos EUA é algo que está totalmente no horizonte da bailarina que, agora, cultiva certo otimismo com a nova gestão da presidência americana. "Estou esperançosa com esse novo presidente nos Estado Unidos, e vamos ter uma mulher negra como vice-presidente. Não vejo a hora dele tomar posse e acompanhar as melhorias que ele vai fazer, não só para os americanos mas para nós, imigrantes, também". Há menos de seis semanas, a bailarina começou uma nova jornada: a de mãe da Laura. Depois de passar a gestação inteira e agora o puerpério em plena pandemia, ela falou sobre os desafios de se acostumar com esse novo ritmo após sua licença-maternidade: "Sou uma pessoa acostumada a ter controle total do meu corpo e aprendi agora que não tenho controle nenhum. Estou aprendendo. Falei sobre isso recentemente nas minhas redes sociais. Nosso corpo se expande durante nove meses e a sociedade cobra que ele volte ao mesmo lugar muito rápido. Mas não é assim", conclui. Abaixo, os principais trechos da entrevista concedida a Marilia Neustein, especial para o Estado.

Como surgiu o convite da Universidade de Harvard? Foi no fim do ano passado. Eu fiquei lisonjeada, porque é uma das universidades mais importantes do mundo. Sou a primeira brasileira negra a participar desse evento, como oradora principal.  Vou falar sobre a minha trajetória, como a dança entrou na minha vida, como eu vim para os Estados Unidos, como me tornei a primeira bailarina de uma das companhias de dança mais importantes do mundo e sobre meus dois projetos  EmpowHerNY e BlacksInBallet.

O que são esses projetos? O EmpowHerNY é uma plataforma para mulheres que agora completa três anos, para que nós tenhamos um ambiente seguro parar compartilhar histórias em uma zona livre de julgamentos, encorajando o diálogo em um termo empático. Não vejo a hora dessa pandemia acabar para juntarmos a mulherada. Outro é o BlacksInBallet que criamos depois do Black Lives Matter.

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Como essa iniciativa surgiu?   Eu juntamente com os bailarinos Fabio Mariano e Juan Galdino olhamos para o nosso ambiente de trabalho e percebemos que, além de elitista, não promove inclusão. A maioria das companhias só tem um ou dois bailarinos negros. Isso não é inclusão. É importante ter um palco que reflita o mundo. Todos nos somos seres únicos. A ideia é que bailarinos negros do mundo todo se vejam e possam pesquisar histórias, porque passamos por um processo de invisibilidade muito grande na dança. Eu, por exemplo, só fui conhecer sobre Mercedes Baptista quando eu já estava em NY. E ela foi um grande nome no Brasil.

Você é um desses nomes?  Sou uma das pessoas que inspira no balé clássico. Mas eu não sou a única e quero abrir a porta para mais bailarinas que também têm história. Muitas meninas que têm um talento promissor estão vendo essa plataforma como um meio de crescer. A ideia é que a gente saia do mundo digital e dê bolsas de estudos, além de abrir o primeiro festival de dança de bailarinos negros no Brasil. É importante falar sobre isso em Harvard.

Será a primeira bailarina brasileira negra a ser palestrante neste evento?   Sim. Vou estar representando a mulher negra latina e brasileira. Nós brasileiros não somos vistos como latinos aqui. Para eles, latino é só quem fala espanhol. Eu tenho orgulho de ser mulher negra, latina, brasileira, tudo junto e misturado. Estou muito empolgada.

A questão racial, assim como outras pautas identitárias, está presente no debate público no Brasil e nos EUA. Como você vê esses movimentos? Está esperançosa com mudanças? Participei das passeatas do Black Lives Matter nos EUA. Foi a primeira vez que eu fui e acho que foi de uma potência enorme. Eu não estava apenas marchando por mim, mas pelo futuro da minha filha. Infelizmente, eu não estou vendo mudanças radicais, mas coisas mínimas. Fomos para ruas, fizemos barulho nas redes sociais. E mesmo assim eu sinto não há empatia e as pessoas não buscam conhecimento porque não viveram essas experiências de discriminação.

Qual seria o caminho? Elas se sentem perdidas em como perguntar, em como estudar, em como se interessar a entender e se responsabilizar. Porque todos nós somos responsáveis por essa mudança. Se não buscarmos o conhecimento essa futura geração vai perpetuar o mesmo erro. Precisamos de uma mudança radical.

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Como avalia a mudança de governo norte-americano?  Estou esperançosa com esse novo presidente, e vamos ter também uma mulher negra como vice-presidente. Eu sempre percebi que os EUA cultivavam uma rejeição em ter uma mulher como presidente, são muito conservadores.  Finalmente começamos a colocar o trem no trilho certo. Não vejo a hora dele tomar posse e ver as melhorias que vai fazer, não só para os americanos mas para nós, imigrantes, também. Saímos de outro país e contribuímos aqui. A minha companhia dança o mundo inteiro, representando os EUA. Me sinto muito feliz de morar nesse país que me acolheu e me fez artista.

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E no Brasil, como você vê a questão da violência e do racismo? Moro em Benfica no Rio, vivi na comunidade da Mangueira e dei aula em outras comunidades como Pavão/Pavãozinho e Jacarepaguá. A gente sabe que tem violência todos os dias e sabemos como a sociedade brasileira vê o corpo negro. Ser negro é questão de sobrevivência. Todos os dias morrendo de medo do que possa acontecer com você. Infelizmente, temos a síndrome do vira-lata e acabamos dando mais reconhecimento ao que vem de fora. É preciso ter consciência e responsabilidade

Quais são os planos após a licença-maternidade? Por conta da pandemia, consigo ficar mais tempo com a Laura. Mas eu tenho meus planos.Meu corpo não é o mesmo e estou refazendo um corpo novo. É engraçado que, há um tempo, se eu tivesse dando um break do balé, eu ia estar louca para voltar. E agora estou diferente, quero ficar com ela, curtindo esse momento. Uma coisa que eu observo é que estou entendendo que o nosso corpo também precisa desse tempo. Falei sobre isso recentemente nas minhas redes sociais. Nosso corpo se expande durante nove meses e a sociedade cobra que ele volte ao mesmo lugar muito rápido, mas não é assim.

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