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Cultura, comportamento, noite e gente em São Paulo

O MAL-HUMORADO BEM-AMADO

Por Sonia Racy
Atualização:

Na reta dos 80, Abujamra nega qualquer legado e proclama: "Odeio a esperança"

 

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"Olha como o meu neto é lindo", desmancha-se Antonio Abujamra ao ver a criança correndo pela sala do seu apartamento de três quartos, em Higienópolis, onde recebeu a reportagem, numa tarde de dezembro. Nas mãos, o menino segurava tacos, presente do avô Abu, como é chamado por amigos e familiares. "Dei uma minissinuca pra ele. Sou um avô incorreto", começa o provocador.

Avesso a entrevistas, Abujamra esbravejou várias vezes durante a conversa. Afirmava só ter aceitado falar por insistência da reportagem e da TV Cultura, na qual comanda, há 11 anos, o programa de entrevistas Provocações. Abu, que completa 80 em setembro, dirigiu mais de 120 peças, além de ter atuado tanto na TV como no cinema. A companhia que fundou - Os Fodidos Privilegiados - fez 20 anos, mas nada parece ser motivo para convencê-lo de que o encontro é oportuno: "Não sou de dar entrevistas do jeito que vocês querem. Não sei, fico irritado". A mulher, Cibélia (a Belinha), antes de sair de cena, antecipa o que virá: "Agora vou pro meu quarto, que não quero assistir malcriação". Abujamra encarna, então, seu papel mais conhecido: o de marginal, inconformado, íntimo de Álvaro de Campos, mais pessimista dos heterônimos de Fernando Pessoa.

A seguir, os principais trechos da conversa com o provocador, concedida diante de sua obra predileta numa casa cheia de quadros, fotografias e cartazes de teatro: oito gravuras de Helene Weigel, atriz-musa-mulher de Brecht, a quem Abu, o demolidor de ídolos, idolatra.

 

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Você está com algum projeto novo, Abu? Quer ver como você não sabe nada da vida de repórter?

Sei que você completou 11 anos de Provocações e que, além disso, levou seu monólogo A Voz do Provocador para os CEUs de São Paulo e até para o Nordeste. Fiz 21 espetáculos pelos CEUs. Fui ovacionado. Sou o rei da periferia. É uma plateia que não tem a arrogância da Augusta nem da Paulista. Parou agora. Em 2012 pode ser que eu volte. É um público livre. São jovens de 15, 16 anos. Fazem o que querem. Ficam atentos, querem aprender.

Você tem esperança nessa juventude? Não tenho esperança em nada. Odeio a esperança. A esperança já f... a América Latina e você vem me perguntar, aos 79 anos, se tenho esperança? Minha esperança é que você não viesse aqui hoje. Era a única (risos).

O que você está montando ou ensaiando? Um ator, um diretor de teatro, tem sempre 200 coisas na cabeça. Não dá pra te dizer "estou fazendo isso", porque amanhã eu mudo. Não paro. Quero montar Thomas Bernhard, que você nunca ouviu falar, porque a cultura brasileira é uma m... mesmo. É um dos maiores autores de teatro do mundo hoje, à altura de Brecht.

O que João Cabral de Melo Neto influenciou na sua vida? É a pessoa mais importante na poesia brasileira. Estive na casa dele em Marselha por 28 dias. Aprendi mais poesia do que em 50 anos de universidade brasileira. É uma das pessoas que realmente impressionaram pela qualidade, pela beleza, pelo saber fazer, por ensinar a olhar, a escutar, que nunca tem nada bem terminado, terminar bem é uma arte muito difícil.

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Quem (ou o que) te levou a fazer teatro? Britar pedras é pior do que fazer teatro. Então, quis fazer teatro, porque é mais fácil pra mim, porque eu não sei britar pedras. Faz tanto tempo e você quer que eu me lembre disso! Foi desde bem jovem. Uma irmã me levava para assistir peças de teatro - inclusive me levou ao extinto Teatro Santana, para ver um grupo americano apresentando um musical inesquecível com um elenco totalmente negro. Então, eu só queria ler teatro, ver os espetáculos. Fui percebendo que eu tinha uma naturalidade acumpliciante, com jeito mesmo para dirigir e interpretar.

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Você estudou com grandes mestres do teatro europeu. Que lembranças guarda dessa experiência? Terminada a faculdade, consegui uma bolsa de estudos na Espanha; depois, em Paris. Fui ficando por três anos, vendo o que de melhor acontecia no Velho Mundo, sempre mostrando o esqueleto para você colocar a carne viva com desembaraço, experiência, descaramento. Fui conhecendo os melhores, incluindo Jean Vilar, Roger Planchon, indo ver o teatro de Bertolt Brecht em Berlim e todas as modernas experiências. Impossível esquecer.

Como conseguiu ser dono do Teatro Brasileiro de Comédia e, depois, perdê-lo? Porque não tenho talento para administrar teatro, sou artista.

Que balanço você faz, depois de mais de cem espetáculos? Tive mas de cem fracassos. E, pra mim, não tem a mínima importância. Para um artista, o fracasso e o sucesso são iguais. Os dois são impostores.

Você gosta mais do sucesso ou do fracasso? Essa pergunta não é boa de se fazer. O que interessa é o meu trabalho. Não tenho mais cobranças, dirigi demais.

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Que legado deixará? Nenhum. Ando na rua, vejo o nome do fulano de tal na placa, me pergunto quem será. Eu vou morrer, vai ter tabuleta na tabacaria, vai cair a tabuleta, vai cair o dono da rua, vai cair tudo. Não quero deixar nada.

Mas você tem uma importância muito grande para o teatro. A palavra importante não existe pra mim. Eu proíbo a palavra importante, eu proíbo a palavra humano, a barbárie tem o rosto humano, então eu não preciso usar, proíbo a expressão "eu acho". O achismo é uma bobagem. Não sou o que vocês querem. Não sou de dar entrevistas do jeito que vocês querem. Eu não sei, fico irritado. Acho que é bobagem e eu quero que você sinta que é bobagem. Quero que você sofra, não eu.

Vou continuar mesmo assim. É fácil fazer teatro no Brasil? Como é que eu vou saber? Nada é fácil ao fazer teatro. É preciso ter talento e, principalmente, vocação. Alguns se jogam acalorados, perdendo o domínio das emoções, a consciência dos efeitos. Isso não é interpretação. É preciso ter sempre por perto os livros de João Cabral, que ensinam como fazer um gesto com a mão suave e sentida, como o toureiro diante da fera.

O que guarda de bom da sua época de diretor? Alguns bons segundos, quando dirigi Cacilda Becker, Glauce Rocha, Margarida Rey, Lilian Lemmertz, Irene Ravache.

O que pensa dos diretores da sua geração? A minha geração é formada por Antunes Filho, Zé Celso Martinez Corrêa, Amir Haddad, os falecidos Augusto Boal, Ademar Guerra e o gigante Flávio Rangel. Temos uma cumplicidade sem palavras entre nós. Conseguida com muita luta contra todas as pressões - ditadura, economia. Ninguém fala mal de mim para Antunes, porque ele não deixa; e eu também não deixo que falem dele. Temos nossas contradições, mas resolvemos entre nós. E o Amir Haddad diz: "Percebeu, Abu, que ainda somos os melhores e os mais modernos do teatro brasileiro?". Fico puto e grito: "Onde estão esses jovens para dizer que somos umas bostas, todos com quase 80 anos?" - a juventude tem de ter mais coragem em relação a nós, porque, se nos respeitarem muito, vou desprezá-los.

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O que pensa dos mais novos que você, como Hamilton Vaz Pereira e Gerald Thomas? São os que estão existindo. No Rio, João Fonseca (para quem Abujamra passou a direção artística dos Fodidos Privilegiados, em 2000) é o darling atual. Mas não podemos nos esquecer desse talento chamado Charles Möeller.

Por que passou de diretor a ator, Abu? Porque fui um imbecil quando diretor. Diretor tem de ter regras, soluções, rigor. Tem de ser chato. Já o ator não. O palco é do ator. Eu quero ser ator, brilhar, ser pavão. Dirigi 43 anos, fui um imbecil. O negócio é ser ator.

Você fez novelas. Tenho de fazer TV, cinema, teatro, pois os supermercados também cobram dos artistas. A preferência é sempre o teatro, que é a fornalha do ator. O resto é executar.

Como vê Ravengar hoje, seu grande sucesso em "Que Rei Sou Eu?"? Foi um sucesso extravagante. Feito em 1989, até agora o Ravengar passeia pelas ruas. Não tem explicação.

O que acha do que se faz na TV hoje em dia? A televisão deveria deixar de trazer só a estética da pobreza. Mas não é fácil. Adquirir um conceito não é fácil. Por isso, é triste ver tanta mediocridade no meio da televisão.

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Melhor atriz? Fernanda Montenegro é a maior atriz brasileira e descobriu um diretor maravilhoso, Felipe Hirsch.

E diretores de cinema? Gosto de Bresson, de Truffaut, do Hitchcock e todos que fazem cinema. Adoro, porque acho que são uns babacas, todos eles. Levam cinco anos para fazer um filme, e eu fracasso em dez peças em cinco anos.

Tem gente que diz ter medo de ser entrevistado no Provocações. Já entrevistei umas 500 pessoas, você não pode dizer que elas tinham medo de estar lá comigo. Elas saem apaixonadas. Ninguém sai triste e irritado comigo.

Já fez terapia? Não, senhora.

Chora? Só choro quando as pessoas choram. Se você chorar agora, eu choro (risos).

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O homem por natureza é bom ou ruim? É uma experiência que não deu certo. Talvez daqui a 10 mil anos dê.

A vida é uma causa perdida? Sem dúvida. A vida, branca ou tinta, é pra vomitar.

A burrice é irremediável? Irremediável. A felicidade é uma ideia velha, cada dia nascem mais pessoas burras.

Acha estúpido ou inútil o matrimônio? Tenho dois filhos e dois netos que me ensinam coisas inesperadas e maravilhosas. E uma esposa, Cibélia, 50 anos de casados. O que dá certo dá certo, o que não dá, não dá.

/PAULA BONELLI

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