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Cultura, comportamento, noite e gente em São Paulo

'O Brasil virou uma contradição ambulante'

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Por Redação
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Confusões no Supremo, Congresso desmoralizado, uma rejeição a valores políticos e morais: para o jurista Célio Borja, há um 'deixar-se levar' minando a vida social.

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Jurista festejado, meio século de política nas costas, Célio Borja é unha-e-carne com a história da Justiça brasileira. Advogado experiente, ex-ministro da Justiça e do Supremo Tribunal Federal, não entra em julgamentos pessoais sobre o bate-boca entre os ministros Gilmar Mendes e Joaquim Barbosa, na quarta-feira. Prefere ressaltar que, às vezes, um problema decorre de uma virtude: "O Supremo brasileiro é um dos raros, no mundo, que debate, diverge e decide à vista do público, tudo transmitido direto pela TV Justiça. E quando um tribunal delibera publicamente está exposto a riscos".

Mas ele não foge à análise das tropelias que agitam a vida do País: "Quem compara o ethos da vida pública de hoje com o de décadas atrás fica horrorizado", resume. Nesta entrevista à coluna, ele dá seu diagnóstico: muita gente, no Brasil de hoje, tem padrões de conduta "que rejeitam inteiramente qualquer submissão do homem a valores". Resultado: o País "virou uma contradição ambulante". A seguir, trechos da entrevista:

O STF surpreendeu o País, durante a semana, com o bate-boca entre Joaquim Barbosa e o presidente da casa, Gilmar Mendes. Que lhe pareceu o episódio? Como ministro aposentado daquela corte, não acho adequado fazer julgamentos pessoais. Só lembro que é da tradição do Supremo um tratamento cortês entre seus juízes.

Mas às vezes a cortesia não prevalece... O Supremo brasileiro trabalha, discute e diverge à vista do público - coisa rara. Em países adiantados, como EUA ou Alemanha, o cidadão não tem o menor conhecimento do que fazem internamente suas altas cortes. Mas elas divergem, também. Certa vez, na Alemanha, assisti a uma sessão de instrução em que um juiz se dirigiu de modo deselegante a um depoente e a um advogado. O nosso tribunal, que delibera publicamente, está exposto a riscos.

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Não é só o Judiciário. Há uma percepção geral, no País, de que o Legislativo desandou e muita gente não se importa com a diferença entre o certo e o errado. É verdade. Quem compara o ethos da nossa vida política de hoje com a de 50 anos atrás fica horrorizado.

A que atribuir tal decadência? Não gosto de assumir atitudes ideológicas - cada um tem o direito de pensar de acordo com as próprias ideias - mas a verdade é objetiva. E ela nos mostra que os valores que sustentavam a conduta das pessoas foram destruídos. O que temos são padrões de conduta que rejeitam inteiramente qualquer forma de submissão do homem a valores. Não é algo racionalmente fundamentado, é simplesmente um deixar-se levar. Isso minou completamente a vida social, fez do País uma contradição ambulante.

Se é uma contradição, qual é o outro lado? Também há na sociedade progressos morais notáveis. Acho elogiável a luta de tantos grupos contra o preconceito. A preocupação com o sentimento da igualdade se alastra. Vejo que os jovens, principalmente, têm horror à discriminação. Vivem muito mais em harmonia com todos os extratos sociais.

Por que tanta gente, no Brasil, detesta obedecer à lei? Nisso somos piores do que outros povos? Não penso assim, acho que isso é autoflagelação. Não somos piores, somos menos hipócritas, talvez. Verdade que há nações em que a repressão aos ilícitos é mais eficaz. E não é só isso. Há povos com formação mais sólida, que se conduzem por princípios, mais do que por leis.

O Judiciário tem sido acusado de invadir as funções do Legislativo. Existe essa invasão? Em alguns casos a queixa procede. O fato é que um juiz pode, de fato, ser um legislador negativo - quando nega a aplicação de uma lei, por ser contrária à Constituição. Está agindo com base em uma norma superior. Mas há também outras situações em que os juízes aplicam a Constituição com outros olhares, de um modo muito mais pessoal.

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O "prende-solta" envolvendo Daniel Dantas revelou uma fratura no Judiciário: um juiz de 1ª Instância rebelou-se contra a decisão do presidente do STF e dezenas de outros juízes o apoiaram. Como o sr. vê isso? Quem está errado é o juiz. Atuando no 1º grau, ele está sujeito ao controle hierárquico jurisdicional e tem de acatar o que vem de cima. Se não for assim, resta perguntar: para que temos uma hierarquia?

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Que fazer quando um juiz não pensa assim? Quando um ministro do Supremo dá um habeas corpus está executando uma função que lhe cabe. Isso não é um debate, é um sistema. Lembro que o Brasil formou uma doutrina própria do habeas corpus, diferente da dos EUA e da Inglaterra. O STF tem o controle global de todas as decisões condenatórias no País. Ele atua como a garantia maior da nossa cidadania.

Mas, pelo que vemos, não alcança a 1ª Instância. Olha, na origem grega há uma expressão para um possesso, que perdeu a razão: é o energúmeno. O que assimila e pratica um fundamentalismo. Temos, por aí, juízes que são exatores: eles decidem conforme o interesse do fisco. Temos também os que decidem com base em convicções pessoais. Está lançado um tipo de corporativismo judicial, com associações que editam a conduta de seus membros. Cabe, então, a pergunta: onde fica a lei?

Muita gente diz, sobre os abusos do Congresso, que os políticos são um retrato do povo, que se pudesse faria a mesma coisa. O sr. concorda? Tenho a impressão de que o que hoje ocorre é uma seleção às avessas, como dizia Ruy Barbosa. Na democracia, ensinava Aristóteles, devem prevalecer os melhores. Nesse sentido, ela se opõe à demagogia, na qual são escolhidos os piores. Eu diria que estamos na fase demagógica da democracia.

GABRIEL MANZANO FILHO

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