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Cultura, comportamento, noite e gente em São Paulo

"O Brasil insiste na invisibilidade do negro", afirma diretor Rodrigo Pitta, que criou série sobre elite na quarentena

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Por Redação
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RODRIGO PITTA - FOTO: FELIPE GABRIEL  

Workaholic, Rodrigo Pitta se viu quase surtando no início da pandemia com a perspectiva de ficar sem trabalhar. O roteirista, compositor e diretor artístico - que foi o responsável pela turnê europeia de Anitta em 2018 e pelo conceito do álbum Pandora, de Luísa Sonza, entre outras coisas - resolveu criar, com a sócia, Mariana Jorge, a série de dramaturgia Alta Sociedade Baixa, feita de forma totalmente remota para o Instagram.

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Pensado para suscitar questões, o enredo de humor tem como ponto de partida uma festa organizada pela mulher de um candidato a governador do Rio durante o período de isolamento e também envolve os problemas de outros personagens. Theodoro Cochrane, Marília Gabriela, Adriane Galisteu, Samantha Schmütz, Karol Konká, Gorete Milagres e Tom Cavalcanti estão entre os artistas que atuam na empreitada - no ar pelo IG TV, do Instagram, e ainda disponível no aplicativo. A série chegou a cerca de oito milhões de acessos.

"Escolhi representar essa fatia da sociedade porque é uma fatia engraçada e com a polarização do Brasil a gente ficou meio dividido, né? Em preto, branco, rico, pobre, bicha, hétero", explica à repórter Marcela Paes.

Como surgiu a ideia pra Instasérie? Logo que começou a pandemia eu fiquei super estressado. Fiquei pensando 'como é que eu vou conseguir trabalhar, como é que eu vou conseguir fazer as coisas que eu mais gosto, que é estar num set de filmagem, estar dentro de um estúdio, estar num palco'. Pensei que precisava fazer alguma coisa, mas de um jeito que as pessoas, e eu, continuássemos em casa. Eu precisava ter paz de espírito para criar alguma coisa criativa, mas sem envolver o contato físico. A ideia surgiu mesmo do meu medo de não poder criar durante o período da pandemia.

Como foi o processo de pensar o formato? Convidei dois colaboradores: a Mariana Jorge, que é minha sócia na Team O! e está em Los Angeles, e o Marcelo Porchat, que roteirizou comigo. Começamos a pensar num tema e chegamos ao Alta Sociedade Baixa e também esquematizei como faríamos tudo isso remotamente. Foram 12 semanas entre fazer roteiro, gravar, fazer as leituras, juntar todo mundo.

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E a ideia pro enredo? Eu escolhi essa fatia da sociedade primeiro porque é uma fatia engraçada e com a polarização do Brasil a gente ficou meio dividido, né? Em preto, branco, rico, pobre, bicha, hétero... E aí eu fui pra esse extremo da high society, da avenida Vieira Souto, mas ao mesmo tempo, decadente.

Foi inspirado pelos comportamentos que viu durante o isolamento social? Sim. Eu comecei a ver o reflexo na sociedade, começou meio um cara a cara, um quem é quem: quem é solidário, quem não é, quem é legal, quem não é, quem é bacana, quem é antiético. Puxei pela figura da socialite que é mulher do candidato a governador e inventei a festa durante a pandemia... Ela tem poder, ela pode prender a empregada e ela resolve dar essa festa.

Tivemos alguma notícias de festa durante a pandemia... Sim, mas não foi inspirado diretamente em nenhum caso. Quando eu comecei a escrever ainda não tinham acontecido esses casos marcantes, como o da Gabriela Pugliesi. Ela, aliás, é minha amiga. Mas não tenho nenhuma pretensão de julgar as pessoas nesse momento, porque essa questão do julgamento alheio é difícil. Se o outro foi não sei aonde, se o outro fez a festa... É difícil porque muita gente fala dos casos que ficam públicos mas também não usam máscara ao sair, saem sem necessidade real.

Foi difícil dirigir os atores a distância? A série acabou virando um espécie de psicodrama entre os atores, porque cada envolvido no projeto estava preso em um lugar do mundo. A Samanta Schmutz em Miami, a Mariana Jorge fica em Los Angeles, eu me divido entre Rio e São Paulo, o Gustavo Mendes tá em Minas... A magia da brincadeira foi justamente esse jogo de ângulos e lugares que eram as próprias casas dos atores.

Eles próprios faziam as filmagens, não? As famílias participavam também. No caso da Galisteu, o marido dela, o Alexandre Iódice, filmava, até o Vitório (filho da apresentadora) ajudou. A Marília Gabriela e o Theodoro foram os únicos que atuaram juntos, porque o Theo mora na frente da casa dela. Foi uma série diferente porque além de atuar, eles tinham que se maquiar, se trocar, escolher o figurino, ficar ensaiando nos ângulos de cada casa para um parecer com o outro...

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A série teve algum custo? Nada. Pra não falar que não custou nada, eu paguei um valor simbólico para os editores de vídeo. É muito pouco se você pensar no tamanho do elenco, comparar com uma série da Netflix. É claro que eu sei que tem coisas técnicas que não são tão boas, mas ficamos impressionados com o resultado e com a quantidade de artistas que quiseram participar.

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O que você achou do movimento Black Lives Matter nos Estados Unidos? Acho maravilhoso e necessário. Tem que existir um foco imediato para isso. E é difícil quando a gente ouve alguém falar all lives matter, que eu ouvi esses dias, porque agora o foco é nas vidas negras e nas injustiças. Por trás dessa negativa, que parece humanitária, existe um poço de preconceito...

Como você enxerga o racismo no Brasil? O Brasil é um País majoritariamente negro, mas parece que as pessoas não sabem disso ou pessoas ignoram os fatos. O racismo não está só numa ofensa ou numa discussão, ele é estrutural e está na mente das pessoas. O Brasil insiste nessa invisibilidade do negro, seja ela consciente ou não. Mas as coisas estão mudando. Esse movimento vai acontecer aqui, como aconteceu nos Estados Unidos. Não importa de que maneira.

Passou por muito preconceito na sua trajetória? Eu falo de um lugar muito privilegiado. A minha família é muito forte, meu pai tem 90 anos e foi um dos primeiros médicos negros formados no Brasil. Foi um pai maravilhoso, eu estudei nos Estados Unidos, minha irmã mais velha também é médica, minha outra irmã tem uma agência de publicidade. Mas isso não me faz menos negro do que as outras pessoas, evidente.

Trabalhar no meio artístico te livrou do preconceito de alguma forma, pelo menos no campo profissional? A outra ponta da minha família é super ligada ao meio artístico. Meu primo tem o bloco Cortejo-Afro em Salvador, fez cenários para artistas como Gil e Caetano, então eu sempre convivi nesses dois polos, o mais tradicional e o mais artístico. Sempre trafeguei por várias realidades, não só no profissional. Acho que a gente não está livre de preconceito em nenhuma área, existe artista preconceituoso, existe artista racista. A arte salva, mas não disso.

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Na sua opinião, o que podemos fazer para melhorar como sociedade nesse aspecto? Tem que existir o exemplo. Falam de espaço para roteiristas negros... Eu já sou roteirista há 20 anos, mas porque não é tão perceptível? Porque eu sou único, ou sei lá, tem mais dois ou mais três em grandes lugares. Há muito tempo, quando eu entrei na Globo, eu estava fazendo um programa com o Lázaro Ramos e só éramos nós dois, os únicos negros. As crianças negras têm que ver médicos e advogados negros como algo corriqueiro. Mas não adianta ser aquela coisa fake. 'Ah, coloquei um negro numa propaganda de margarina. Fiz uma grande coisa'. Aqui no Brasil ainda existe aquele (Sérgio Camargo) presidente da Fundação Palmares... Você quer coisa mais patética que isso?

Você transita por muitos campos no meio artístico. Onde se sente mais confortável? Eu já tive uma fase cantor e compositor. Tive música até em novelas, gravei com a Ana Carolina, com a Elza Soares, com o Frejat. Por isso me sinto confortável trabalhando com músicos, mesmo que de outra maneira, Eu acabo entendendo o que eles querem. Amo esse universo do videoclipe, em que estou agora, e tenho feito muito com a Team O!.

Algum projeto para o pós-pandemia? Quero agora começar um programa chamado Preto à Porter, que é exatamente sobre personagens negras bem-sucedidas. E se chama Preto à Porter justamente pra dizer que também temos histórias legais. Que o negro também pode ser sofisticado.