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Cultura, comportamento, noite e gente em São Paulo

"Mobilização é chave para melhorar desigualdade", diz Eduardo Lyra, do instituto Gerando Falcões

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Por Sonia Racy
Atualização:

EDUARDO LYRA - Foto: JAIRO GOLDFLUS

Se o ditado 'fazer do limão uma limonada' pudesse ser representado por uma pessoa, Eduardo Lyra poderia ser facilmente o escolhido. Criado em um "barraco de chão batido" na periferia de Guarulhos, o paulista de 32 anos fundou em 2013 o Gerando Falcões, um dos mais respeitados institutos do terceiro setor. Só com a mobilização durante a pandemia, a ONG gerou milhões em doações para comunidades pobres. Em uma dessas ações, o empreendedor social, com auxilio de empresários, criou 10 mil bolsas digitais para auxílio educacional de jovens vulneráveis. Em outra frente, injetou R$ 20 milhões na economia de favelas. Incentivado desde pequeno pela mãe, vê na mobilização da sociedade por meio da iniciativa privada, a chave para melhorar a desigualdade no País. "Precisamos assumir a responsabilidade de um Brasil diferente". Abaixo, os melhores momentos da conversa:

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Como você começou a Gerando Falcões? Fundei a ONG há sete anos. Nasci numa favela, morava num barraco com chão de terra batido... Meu pai foi preso indiciado por roubo a banco. Eu vivia numa situação de extrema vulnerabilidade mas tive a sorte de ter uma mãe muito inspiradora, dona Maria Gorete de Brito Lyra, minha rainha. Todo dia ela me dizia 'filho, não importa da onde você vem, o que importa na vida é pra onde você vai e você pode ir pra onde você quiser'. Acreditei na minha mãe, me eduquei e comecei a empreender. Escrevi um livro chamado Jovens Falcões, publiquei de forma independente e vendia com mais 30 amigos de porta em porta por R$ 9,99. Em três meses, nós vendemos cinco mil livros. Peguei essa grana e usei pra fundar a ONG.

Como vocês atuam? Fomos crescendo construindo pontes entre a favela e o centro. Sempre atuando em educação, desenvolvimento econômico e cidadania. Hoje em dia estamos presentes em diversos lugares por meio de contatos com líderes sociais. Ajudamos esses líderes, colocamos recursos financeiros, de gestão e de tecnologia. Nos próximos quatro anos, teremos 540 líderes no nosso ecossistema e presença em 1200 comunidades, que representam 20% do território de favelas no Brasil. Explique a iniciativa da criação de bolsas digitais para estudantes de baixa renda na pandemia. Nós nos propomos a combater a exclusão digital. Com isso, conseguimos doações para 10 mil bolsas digitais, de pessoas como Jorge Paulo Lemann, Neca Setúbal, BTG Pactual e família Diniz. Mas o que são essas plataformas de estudos? São aplicativos, com direito a acesso à internet móvel e aulas online.

Sua trajetória de vida é uma exceção, tendo sido criado em um ambiente de condições tão duras. Acha que outros jovens de baixa renda têm essas mesmas chances? Infelizmente, histórias como a minha são de fato exceção. Do lugar de onde eu venho, que é de fome, fui a primeira pessoa tanto da família da minha mãe quanto da família do meu pai a pisar numa universidade. Minha mãe passou parte da infância vivendo de baixo de uma ponte. Meus tios eram catadores de recicláveis na rua. Muitas pessoas da minha família foram assassinadas com arma de fogo. Eu ter chegado até aqui é quase que um erro químico.

O que falta para que histórias como a sua não sejam exceções? Consegui chegar até aqui, mas a maioria fica pelo caminho. Porque falta oportunidade, falta educação, falta acesso. O Brasil precisa com urgência fazer uma revolução nas políticas públicas, nas entregas de serviços. A sociedade tem que estar ainda mais engajada. Senão nós vamos cometer um erro histórico: o de chegar com um século de atraso na vida das pessoas mais pobres.

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O que você diria para pessoas que estão sem esperança, em situações muito difíceis? Quando se está numa situação de extrema pobreza, vulnerabilidade, a pressão emocional, a descrença da sociedade e racismo são muitos fatores a ser considerados na realidade dessa pessoa. Mas algo que eu nunca subestimo é a força do espírito humano. Ter a coragem de ir atrás, de saltar obstáculos, de dizer 'mundo, não tenho medo de você'. O brasileiro tem uma capacidade incrível de reinvenção, nós somos é isso. A mensagem que tento deixar para cada jovem na favela, é, apesar de todas as dificuldades, acredite em si próprio. Acredite na sua cor, no seu cheiro e no seu CEP. Tem coisas que a favela ensina que Harvard jamais ensinaria.

Pelo trabalho na Gerando Falcões você acompanha de perto a situação das comunidades pobres na pandemia. Como está a situação nas favelas? Travamos uma batalha incrível durante esses últimos meses. No começo dessa pandemia, recebíamos muitas notícias tristes. Fui visitar famílias que a gente atende e vi mulheres pálidas, há três dias sem comer para que os filhos fizessem uma refeição. Nesse momento, voltei pra dentro da Gerando Falcões, reuni meu time e tomamos uma decisão: vamos liderar. Fomos atrás de doações, recursos, investimentos, puxando a pessoas, tentando influenciar, inclusive, o governo.

O que vocês montaram? Construímos um programa chamado 'Corona no Paredão, Fome Não', que saiu com uma doação de R$ 5 milhões vindos do bolso de Jorge Paulo Lemann, Pedro Bueno, David Feffer, Alex Beringuer e Rafael Ávila, entre outros. Também lançamos a mesma campanha em nossas plataformas digitais e começamos a mobilizar mais doações. Foram mais de vinte mil pessoas doando, originárias de mais de 10 países diferentes. Também cadastramos famílias por ordem de vulnerabilidade, e conseguimos entregar um cartão vale alimentação na mão de cada chefe de família. Contabilizamos a injeção de R$ 20 milhões na economia de favelas. Olha, foi uma ação que atendeu mais de 400 favelas no Brasil inteiro, em mais de 14 estados, com muita capilaridade.

Acha que caiu a ficha, sociedade e iniciativa privada acordaram e colocaram a mão na massa sem depender do Estado? Total. Até porque, não dá pra gente votar de tempos em tempos, voltar pra casa e achar que tudo vai ficar bem O Brasil é grande demais. Dado isso e toda a dificuldade operacional, tecnológica e de inovação do governo, é muito difícil que o Estado consiga resolver todos os problemas. Não vai conseguir. Não adianta a gente delegar um desafio tão gigante para os governos. Não dá pra ter uma esperança burra de que algo nessa linha será diferente. Já vimos essa fotografia no passado. Precisamos assumir a responsabilidade de um Brasil diferente. Mobilizar a ciência, a tecnologia, as startups, o terceiro setor, os empreendedores sociais, a medicina, a iniciativa privada, os educadores, os poetas, os músicos, os esportistas... Os brasileiros precisam entender que mudar o Brasil é um desafio de todos nós.

Como podemos ajudar o cidadão brasileiro a entender que ele precisa ser mais consciente e respeitoso em relação às outras pessoas que vivem ao redor? Vou te contar uma história. Quando eu morava com a minha mãe lá na comunidade, eu tinha um vizinho apelidado de Formiguinha. Todo dia ele acordava muito cedo, pegava uma vassoura e saía varrendo todas as calçadas da comunidade. Ele varria a dele e a de todos os vizinhos. Esse cara me deu exemplo. Se cada um limpar a sua calçada, nós teremos um País limpo. Mas como nós vivemos num País onde nem todo mundo faz a sua parte, algumas pessoas se levantam para fazer além, fazer mais. E o nome disso é cidadania. Cidadania é o quanto as pessoas são capazes de se importar. Acho que o coronavírus está dando uma oportunidade, sobretudo uma chacoalhada na sociedade, para que não voltemos ao normal, para que mudemos de patamar. Temos que interromper o ciclo da pobreza.

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Então você acha que essa pandemia pode, de algum jeito, tornar a sociedade menos egoísta? O egoísmo vem de uma decisão, como a solidariedade também. E todos nós temos o livre arbítrio. Muitos países desenvolvidos no mundo não têm desigualdades nas taxas que nós vemos no Brasil porque foram bem educados, instruídos e tiveram políticas públicas direcionadas para quem mais precisa. O Brasil é um país extraordinário, com pessoas incríveis, com um terceiro setor de um empreendedorismo social que está se tornando cada vez mais se forte. Acho que daqui em diante nós vamos começar a fazer coisas maiores, mais solidárias e fundamentalmente enxergar uma sociedade mais engajada e participativa. Eu sou um otimista.

Como as pessoas podem contribuir com o Instituto? As pessoas podem doar na campanha "Doe um Futuro", que financia as bolsas digitais. Também podem preencher uma ficha pra se tornar voluntários, no site da Gerando Falcões. O Brasil precisa justamente desse de espírito voluntário./COLABOROU MARCELA PAES

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