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Cultura, comportamento, noite e gente em São Paulo

'Minha relação não é com a fama, é com a arte', diz Maria Rita

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Por Sonia Racy
Atualização:
MARIA RITA EM SHOW. FOTO: DIVULGAÇÃO 

Cantora lamenta o momento político brasileiro e explicita os desafios de ser artista 

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Maria Rita costuma dizer que ela é só um "canal" para algo mais forte passar: a música. A cantora, mesmo que mantendo uma devoção quase que espiritual com seu ofício, é bem mão na massa: produz e dirige seus shows desde sempre. Sendo assim, o trabalho, segundo ela mesmo diz, sai muito verdadeiro. A questão da arte e dos desafios de se fazer cultura no Brasil é muito forte no discurso de Maria Rita - que conversou com a repórter Marilia Neustein em um restaurante em Pinheiros. "É trabalho à beça. Cheio de dificuldades, tem os horários insanos da malha aérea brasileira, situações em que a gente não consegue chegar a tempo da montagem do show, não existe seguro para equipamento de estrada...", revela.

Para a cantora é preciso valorizar a cultura brasileira, algo que está sendo menosprezado pelo governo atual. "Como eu morei um tempo fora e cursei comunicações sociais, acabei desenvolvendo uma relação com a cultura nacional, do ponto de vista da diáspora, da saudade", explica. "Estamos vivendo esses tempos sombrios, na mão de uma turma que exalta o que é de fora, na arquitetura, na música, no pensamento, na soberania. E eu acho que isso vai ter um impacto terrível". Abaixo, os melhores trechos da entrevista.

Você não é apenas cantora. Dirige e produz seus shows. Por que essa escolha?Fui me treinando desde menina para essa quantidade de coisas. Sempre exigi muito de mim e fiz essa opção porque, para mim, sai muito mais verdadeiro. Vem de um lugar de amor, de necessidade mesmo. Uma necessidade que é espiritual. Se eu não trabalhar, eu não fico legal. Não tenho como deixar uma criação que está aqui dentro.

Por quê?Porque vem tudo na minha cabeça: a sonoridade, as cores, o tamanho...  E não tenho a maturidade de deixar outra pessoa fazer isso por mim. Por um lado é muito bom, porque tudo é muito meu, mas por outro eu às vezes pondero se não estou perdendo oportunidade de ter experiências de aprender coisas novas.

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Muita gente chama a atenção para o fato de você ser dona da sua vida e do seu negócio. Como vê a luta feminista contemporânea?Falo que herdei isso no cordão umbilical pela minha mãe, no cordão veio junto com alguns genes de DNA que ela jogou pra mim. Porque eu tenho uma coisa de justiça reta que até trato na terapia. E o mundo não é reto. Eu sofro muito com injustiças. Já de criança eu não conseguia ouvir discurso racista. Sempre entendi que tinha uma coisa estranha na relação com a mulher.

Como?Gosto desse movimento que estamos vivendo, porque todas nós temos alguma história pra contar. Só que a gente não conta. Por isso que a representatividade é tão importante. Quando você começa a ouvir relatos de pessoas que não conhece, mulheres de outras realidades, advogada, desempregada, você fala para pensar que não é louca. Nenhuma mulher está achando engraçadinho. É um empoderamento que significa que temos voz, precisamos falar disso, temos um lugar na sociedade. Há muito tempo deixamos de esquentar a barriga no fogão e esfriar no tanque.

Você trocou recentemente de empresário. Como está sendo essa transição?A transição é sempre chata. É uma separação, mas é normal. Eu precisava expandir, canalizar toda a energia criativa em outras frentes. Então tem algumas coisas no horizonte vindo, e aí é capitalizar nisso, é permitir que eu possa fazer cursos, me aprofundar um pouco mais.

Musicalmente o que a atrai mais?Sou sambista, não tenho mais dúvidas. Me faz muito bem, me completa artisticamente uma série de facetas que o samba permite, mesmo dentro daquela alegria quase infundada, que eu acho que é o mais próximo do que eu sou de fato.

Gosta da relação com o público, de fazer show?Amo fazer show. E o público é sempre muito caloroso. É engraçado, acho que por causa da minha trajetória muita gente acha que meu público gosta de coisa mais intimista. Mas meu público tem de 20 a 35 anos. Eu gosto muito de fazer show, de passar som, de sair pra comer com a equipe. Eu tenho amigos e colegas que fazem show porque precisam, mas eu não, eu adoro.

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 Acha que o público desconhece os desafios de ser artista?Sim. Outro dia uma seguidora reclamou no Twitter que eu estava encerrando minha turnê e tentei explicar para ela como era caro e difícil fazer show. Só o preço das passagens de avião para minha equipe, que é bem enxuta, é muito alto. Costumo dizer que cada show é um empreendimento que o empresário abre. É movimento de dinheiro, de mão de obra e energia que equivale, inclusive financeiramente, a abrir um negócio. O Brasil hoje não dá condições aos artistas.

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E as pessoas não acreditam ser um trabalho?É trabalho à beça. Cheio de dificuldades, tem os horários insanos da malha aérea brasileira, situações em que a gente não consegue chegar a tempo da montagem do show, não existe seguro para equipamento de estrada no Brasil. Se o meu caminhão for assaltado, acabou. As estradas são esburacadas, despachar equipamento em avião só em avião de carga, que tem o horário completamente diferente do nosso. É inviável, encarece. O público não precisa saber disso, mas poderia ter uma confiança numa coisa: o artista trabalha, não é só glamour.

E você leva uma vida normal?Não tem como ser normal. É assim, eu sou reclusa... Não sou ermitã, não fico escondida, mas eu sei onde posso ir, se eu não estou a fim eu não vou.

Por outro lado, os fãs têm uma relação com o artista que às vezes é de uma intimidade muito profunda. Eu entendo bem isso. É muito forte. É um negócio que cura as pessoas. Cada história que me param pra contar. Por isso que eu digo que a minha relação com a música não é de fama, entende? A minha relação é com a arte, eu preciso fazer isso. É uma violência muito grande comigo mesma se eu não fizer. Eu não sou famosa, eu sou artista.

Tem uma conexão espiritual?Sim, sou um canal, eu sou um grão de areia. É muito louco saber que 4 mil pessoas saem de casa pra me ver cantar. E tem gente com a cara espantada, com a cabeça baixa, rindo, chorando. E quando eu saio do palco estou completamente aberta, já cheguei a desmaiar, porque é uma experiência religiosa. Meu palco é meu altar. O que eu faço ali em cima eu não consigo fazer fora dali.

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Seu marido é músico também, como é isso, vocês têm uma casa musical ou ao chegar em casa vocês não querem ver um piano na frente?Musical. A gente não tem área proibida, o estúdio está lá. Tem piano na sala, o Antonio (filho) senta no piano, ele é autodidata, começou a tocar piano, tirou de ouvido...Não tem nenhum tabu.

Isso também lembra sua infância?Não muito, meu pai era mais concentrado, quando ele estava trabalhando não gostava de bagunça.

Você é do tipo de cantora que não consegue ouvir música casualmente?Sou do tipo que quando vai fazer pesquisa de repertório para tudo. Organizo a mesa, computador, papel, caneta, água, café... e telefone. Mas aí, em dia de sol, molecada na piscina, eu coloco um som. Meu marido também. A gente acaba trocando muito um com o outro por conta disso.

Como é sua relação com a música brasileira? É algo que a emociona e mobiliza?Como eu morei um tempo fora e cursei comunicações sociais, eu acabei desenvolvendo uma relação com a cultura nacional, do ponto de vista da diáspora, da saudade, e ao mesmo tempo intelectualizando isso. Na faculdade eu fiz comunicações sociais e estudos latino-americanos, então juntava os dois universos.

O samba é uma forma de juntar esses dois universos?Quando eu chego no samba, chego com o entendimento de uma identidade nacional e cultural, de onde surgiu, da história, da resistência, da minoria que é maioria. Então, talvez por conta desse viés, tenho um entendimento de por que a cultura é tão fundamental pra se saber o que é uma nação, a história. Estamos vivendo esses tempos sombrios, a gente está na mão de uma turma que exalta o que é de fora, na arquitetura, na música, no pensamento, na soberania. E eu acho que isso vai ter um impacto terrível.

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Acredita que é uma forma de negação?É uma negação. A liderança, em linhas gerais, acaba negando um passado. É muito difícil você assumir, até na história recente do Brasil, a anistia, os militares. Isso não foi visto em lugar nenhum. A Argentina está correndo atrás, o Chile também. Como é que um presidente da República vai pra um país e diz que os imigrantes que lá estão são de fazer a gente sentir vergonha? Isso é negar toda uma história de opressão, de dificuldade social, e essa negação é bizarra. O que é um país sem cultura?

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