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Cultura, comportamento, noite e gente em São Paulo

'A esperança é um motor para as mulheres', diz a imortal feminista Rosiska Darcy de Oliveira

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Por Sonia Racy
Atualização:

Rosiska Darcy de Oliveira. Foto: Fabio Motta/ Estadão

A escritora e feminista reconhecida Rosiska Darcy de Oliveira observa o panorama geral da situação dos direitos das mulheres no Brasil e identifica o que está por trás de tantas reações violentas e casos de feminicídio. "É exatamente porque estamos avançando que estamos desencadeando essa fúria contra nós", afirmou à coluna em entrevista por videoconferência, na semana passada, por conta do Dia da Mulher - neste dia 8 - e lançamento do seu novo livro Liberdade, da editora Rocco. "Na medida em que passamos a não aceitar a condição que aceitávamos antes, a reação é maior", emendou.

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A crítica social, as ideias libertárias, o otimismo são elementos da sua nova obra: "A esperança é um motor para as mulheres. Acho que uma das principais armas contra nós é tentar quebrar a esperança".

Um indicador de que as mulheres querem mesmo a liberdade, para Rosiska, é a taxa de natalidade no Brasil: "Em país que nunca teve um programa sério de planejamento familiar, ter uma queda na taxa de natalidade como nós tivemos, é impressionante. E isso mostra uma capacidade de escolha. E o direito de escolha é um outro nome da liberdade".

Rosiska integra a Academia Brasileira de Letras, é autora de dez livros e começou como jornalista em veículos como as revistas Visão e Senhor, o jornal Sol e Jornal do Brasil. Ela se lembra quando era editora de internacional do Sol e tirou do teletipo (aparelho telegráfico) a notícia da morte de Che Guevara.

Aos 76 anos, Rosiska está casada há 50 com o diplomata Miguel Darcy de Oliveira, com quem passou o exílio por 15 anos em Genebra. Lá, Rosiska se ligou ao Movimento Feminista Suíço e Internacional, fez amigos e se sentiu pertencendo a um imaginário "país das mulheres", de que fala Virginia Woolf. De volta ao Brasil, ocupou cargos públicos como o de presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, no governo Fernando Henrique Cardoso, o equivalente ao cargo de ministra de Estado da Mulher, da Família e Direitos Humanos, comandado hoje por Damares Alves.

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A seguir, os principais trechos da entrevista concedida à repórter Paula Bonelli.

Quais são as razões do sucesso do conservadorismo entre as mulheres?

Esse conservadorismo vem, em geral, de um medo imenso da perda das certezas da religião, de um determinado perfil familiar... Mas no caso das mulheres acho que, sobretudo, quando elas são menos autônomas na sua vida, esse conservadorismo se torna mais forte. É exatamente porque as liberdades avançaram que esse conservadorismo reagiu. Então, o que nós temos hoje é uma situação de enfrentamento. E quanto mais esse obscurantismo tenta se afirmar, temos que afirmar a liberdade. E esse é o sentido do meu livro. É um ato de resistência contra o obscurantismo.

E existem indicadores de que as mulheres querem mesmo a liberdade?

O indicador mais forte é, num País que nunca teve um programa sério de planejamento familiar, ter uma queda da natalidade como nós tivemos no Brasil. É uma queda impressionante. E isso mostra uma capacidade de escolha. E o direito de escolha é um outro nome da liberdade. Há novas configurações familiares que são cada vez mais insólitas, cada vez mais inesperadas.

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A violência psicológica de hoje contra a mulher é a mesma de antigamente?

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A violência contra as mulheres sempre existiu, dela se falava muito menos, dela se fala muito mais hoje, o que já é um passo importante. Era completamente normalizada. Um homem tratar mal uma mulher, fazer assédio sexual, bater numa mulher dentro de casa não era nada de extraordinário. Hoje o Código Penal pune isso. É uma diferença imensa. Mas, mais do que isso, a sociedade, as mulheres se revoltam contra essa violência. É muito diferente de um tempo em que estava tudo coberto.

E as feministas de hoje?

Acho que continuam sendo, como foi a minha geração, muito corajosas porque estão enfrentando esse momento duro do Brasil. Elas têm a favor um movimento como o Me Too e os movimentos internacionais contra a violência. E também um terreno que por um lado é mais fácil porque já foi desbravado por nós, mas estão pegando essa reação violenta ao que nós plantamos, tentando defender e ampliar esse terreno.

Já viveu o mansplaining, quando um homem explica algo óbvio para uma mulher com um tom paternalista, como se ela não tivesse intelecto para entender?

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Acontece muito. Eu já encontrei muito isso na vida e continuo encontrando, entende? São os que parecem compreensivos, então explicam as coisas a você, em geral, achando que você está pensando assim porque não entendeu, mas quando entender vai mudar de opinião. É lamentável. Não posso dizer outra coisa. A gente tem que ter muita paciência.

Acha que paciência é uma qualidade também das feministas?

A paciência acho que não, a nossa qualidade é a resiliência. Sou de uma geração que foi chamada de tudo que você possa imaginar, vítima da piores coisas, como o deboche. E isso vale pra população brasileira inteira, nós temos que ser resilientes. A esperança é construtora de realidade. Resistir aos inimigos da liberdade. Olhar de perto onde a Fênix rebelde está ressuscitando. Não nos deixar levar pelo sentimento de que o País está perdido. Estamos todos confinados diante de uma tragédia. Um inimigo que ninguém esperava, para qual ninguém tem muita solução. A Ciência ficou perplexa diante disso, e está lutando. E eu deixo aqui inclusive o meu voto de louvor aos cientistas.

Qual elemento é importante para sua escrita?

Escrevi muito em defesa das mulheres, da cultura brasileira e sobre as ideias libertárias. Sempre defendi a liberdade. Sempre. Esse é o meu campo não só de trabalho, mas é um campo existencial.

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Quem te inspira na literatura e nas artes?

Eu tenho um capítulo inteiro no meu livro Liberdade, sobre a Clarice Lispector. A Clarice conseguiu na literatura o máximo de liberdade. Escreveu como ninguém e formou a minha pessoa. E tem um capítulo também dedicado à personagem Antígona que me inspirou muito. É uma peça de teatro que foi escrita por Sófocles em 442 a. C, e que atravessou a história sendo permanentemente recriada sempre que alguém enfrentava uma situação de opressão. Antígona foi aquela que defendeu a liberdade como um absoluto, e que enfrentou um rei e um homem. É o texto, juntamente com Hamlet, mais reescrito da história da literatura.

Você diz no seu novo livro que a esperança não é um sentimento piegas.

Não. Na minha interpretação a esperança é um motor para as mulheres. Acho que uma das principais armas contra nós é tentar quebrar a esperança. É tentar instaurar justamente um clima de desesperança.

Cite um momento pessoal marcante em sua trajetória.

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Eu saí do Brasil acusada de ter denunciado torturas no exterior. Nesses 15 anos que eu fiquei exilada em Genebra eu me liguei ao Movimento Feminista Suíço. E fiquei muito próxima dessas pessoas, porque eu não tinha amigos e ali eu tinha a impressão que pertencia àquele "país das mulheres" de que fala a escritora Virginia Woolf.

O seu marido também foi perseguido? O que aconteceu?

Eu era casada com um diplomata que foi preso, acusaram nós dois de estarmos fazendo uma campanha de divulgação de notícias de tortura contra presos políticos. Nós não estávamos fazendo uma campanha, mas levamos notícias sobre tortura às Organizações dos Direitos Humanos da época.

Como foi a sua volta ao Brasil e à vida política?

Quando eu voltei para o Brasil, evidentemente passei a ter um protagonismo no movimento brasileiro, presidi a Coalizão de Mulheres Brasileiras, organizei aqui, em 1992, na época, da Rio 92, um evento que foi um grande evento do Movimento Feminista Internacional, que foi o Planeta Fêmea, depois fui presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, no governo Fernando Henrique Cardoso, que é a atual Secretaria da Mulher e, bom, a partir daí passei a trabalhar no Brasil todo pela causa das feministas.

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O Brasil e o mundo avançam nessas questões dos direitos e da proteção dos direitos da mulher ou há um retrocesso?

Acho que não há um retrocesso, mas um fenômeno interessantíssimo, que já devia ser esperado, uma reação violenta contra nós mulheres. Na medida em que passamos a não aceitar a condição que aceitávamos antes a reação é maior, chegando agora ao cúmulo dos feminicídios, o que dá a impressão de que estamos regredindo. Mas não estamos regredindo. É exatamente porque estamos avançando que estamos desencadeando essa fúria contra nós.

O título da Academia Brasileira de Letras é bem importante para os escritores.

É claro, eu fiquei muito honrada quando eu fui eleita para a Academia, porque qualquer escritor ficaria de estar numa instituição com João Cabral de Melo Neto, com Guimarães Rosa, com Jorge Amado, Rachel de Queiroz, falando apenas dos que já faleceram. E a Academia é um lugar onde convivem o passado e o futuro. E isso é muito interessante. Não tenho problema nenhum de usar o fardão. Eu sempre fui carnavalesca.

Acha que a humanidade está perdida?

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Eu acredito na humanidade como um projeto possível, porque fomos nós que nos arrancamos da condição animal chamada de crueldade o que os animais chamam de seleção natural. Fomos nós que inventamos essa joia do pensamento que são os direitos humanos. Eu acho que é uma obrigação procurar a felicidade. É um dever.

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