As novelas de ontem e o choque de hoje

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Por Cristina Padiglione
Atualização:

Não deixa de ser um choque assistir a novelas antigas no canal Viva e notar como éramos condescendentes com atitudes que hoje repudiamos de imediato.

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O Viva mexe com a nossa memória afetiva e, mais do que isso, com a certeza de que nossos valores estão muito atrelados à evolução dos tempos e à tolerância social vigente hoje, muitas vezes omissa ontem.

Sabe quando a gente fica indignado com cenas de carro sem cinto de segurança? Pois é. É um clássico exemplo de como determinadas imagens eram aceitáveis, para não dizer normais, há muito pouco tempo, e hoje são capazes de chocar.

Sei que vou ser apedrejada por isso, mas, foi com certa surpresa que me vi agora diante de 'Laços de Família', novela de 2000, de Manoel Carlos, e me peguei, só então, compreendendo e aceitando (para não dizer concordando com) as razões do juiz Siro Darlan, que na época vetou a participação de menores no folhetim.

Naquele tempo, a mídia (eu incluso) deu amplo espaço a imagens dos artistas tapando a boca, em protesto ao que chamaram de censura. Agora, revendo as imagens que motivaram a decisão de Darlan,percebo que, se fossem produzidas atualmente, as cenas em questão chocariam qualquer um de nós: a pequena criança no colo de Rejane Alves chora desesperadamente enquanto a "mãe" fictícia bate boca histericamente com seu "pai", Luigi Barricelli. E chora, a criança. Como chora! Não há cortes que apontem para um possível trabalho de edição, a pequena de fato está em prantos.

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Ainda que se diga que o choro foi reforçado na mixagem do áudio, o que não parece ser o caso, posso assegurar que aquela sequência hoje só seria feita com um boneco. O ser inanimado estaria no colo da mãe, de costas, durante o bate-boca do casal. E algumas imagens com a criança de verdade, que na época tinha 2 anos, seriam inseridas em quadro na hora da edição, para dar veracidade à criatura.

Durante A Teia, série policial de alta tensão vista há dois anos na Globo, a pequena Ninota era verbalmente torturada pelo personagem de Paulo Vilhena.

 Foto: Estadão

Papinha, ou Rogério Gomes, o diretor, teve o cuidado de cortar imagens de close da menina nas situações de maior pressão, para montar uma reação espantosa na edição. Muitos cortes foram feitos, também, para que, pausa por pausa, a equipe pudesse reforçar à menina que toda aquela história era de mentirinha.

No caso de Laços, a criança está para lá e para cá, no meio da discussão de pai e mãe, como moeda de chantagem entre os dois. Na época em que Darlan vetou crianças em cena e exigia a exibição da novela só após as 21h, até almoço em Brasília, com Fernando Henrique, então presidente, a Globo marcou, levando a bela Vera Fischer como sua representante. Ou seja, não só crianças choravam de medo em cena, como o lobby acontecia à luz do dia, com certo glamour, sem qualquer reaçãointempestiva. Tudo normal.

É como assistir a crianças pulando de um banco para o outro, no carro, de trás para frente, cena muito comum na série Mad Men, que se passa na década de 1960. O enredo de Don Draper, aliás, tem várias passagens feitas para chocar um público que hoje se acha muito civilizado, mas que pensava bem diferente há muito pouco tempo.

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Numa dessas, Betty e Don levam as crianças para um piquenique no parque. Ao final, a matriarca sacode a toalha sobre a grama, lá deixando todos os restos de embalagens consumidas pela família. Isso, fora cigarro, a qualquer hora, em qualquer lugar, inclusive dentro de hospitais e consultórios médicos, na cara das crianças, até era normal, por que não?.

O aceitável de ontem já não é tolerado.

Oxalá, como disse Gregório Duvivier em sua última crônica, a gente possa estranhar no futuro situações que, mesmo incomodando, ainda são aceitáveis hoje, em especial no que diz respeito a racismo e sexismo. Será?

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