Summer Festival: Florence entre o sagrado e o profano

Jotabê Medeiros

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Por Redação
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Num jornal popular, o show poderia ser descrito assim: "Ruiva descalça de 25 anos, sem sutiã, vestida com uma batinha laranja que parecia emprestada de uma inrizete (as seguidoras do neomessias Inri Cristo), deixa boquiabertas 22 mil pessoas no Templo do Samba".

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Jornais populares têm essa liberdade de dizer coisas de forma irresponsável, divertida e concentrada. Mas o show que fez o ano começar em altíssima voltagem e com grande excelência artística, o de Florence + the Machine, anteontem, no Anhembi, pede uma radiografia mais aprofundada.

Florence Welsh é ultrapop, mas seu pop é artesanal, anti-industrial, extremista. Sua "árvore genealógica" é complexa: ouve-se ali Tori Amos, Sinead O'Connor, Björk (às vezes, parece que ela se diverte recuperando também algo do excesso new age de Enya). No show, foi ainda mais longe: declarou seu amor por Etta James, morta na semana passada, cantando Something's Got A Hold On Me, hit da Rainha do R&B. Trata-se de conhecer o sentimento das palavras que você canta - uma lição que as meninas que abriram a noite, Rox e Dionne, ainda não aprenderam.

A noite tinha pinta de matinê. Havia garotas com cabelos vermelhos e franja, imitando sua "ídola". Havia garotos de chapeuzinho de crupiê imitando seu ídolo Bruno Mars. Há um ano, no mesmo Summer Soul Festival, veio a cantora mais influente da primeira década do século, a também britânica Amy Winehouse, e o frisson era grande. Agora, pouca gente sabia cantar as canções da estrela da noite, e havia mais curiosidade do que tietagem. Mas o que veio a seguir foi uma conquista em massa.

Florence trouxe o show do disco mais recente, Ceremonials, considerado um dos melhores do ano passado. Ela abriu com a música inicial do disco, Only if for a Night, e cantou outras cinco do álbum. Um conceito de culto, daí a explicação para o cenário imitando vitrais de catedral, e a sacerdotisa vermelha se encarregava de entoar os cantos pós-beneditinos mais lindos.

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 Foto: Estadão

A banda tem como mola propulsora a bateria pesada de Christopher Lloyd Hayden, que criava abalos sísmicos em torno de canções como Shake it Out. Do lado esquerdo, o contraponto era a guitarra vintage de Robert Ackroyd (uma Gibson ES345 modelo B.B. King , a famosa Lucille), usada para tingir a tela de pinceladas de blues eletrificado. Também chamava a atenção o teclado fantasiado de Isabella Summers , do lado direito.

Em Leave My Body, Florence cantava: "Quero deixar meu corpo/Quero perder a cabeça". É uma manifesto florencista: a música dela busca justamente esse efeito. Florence contrapõe em sua música desejos extremos, como o de levitar e o de esmagar. Para obter sucesso nesse seu rito sagrado, ela conta com uma voz fenomenal, profunda, e recorre a cartas há muito fora das mangas - como uma solitária harpa que é tocada em algumas canções por Tom Monger.

Outras cinco músicas são do primeiro disco de Florence, Lungs (Universal), lançado em 2009. Um balanço simétrico entre o passado e o presente. Lungs tinha menos elementos, e canções como Rabbit Heart eram mais assobiáveis e simples. O disco novo é um tanto quanto mais complexo e usou mais os truques de estúdio - efeitos de "ruído de água em caverna", por exemplo, na música What the Water Gave Me.

De uma a outra ponta de sua carreira, Florence soa, em disco, mais abstrata e menos capaz de prender a atenção de um público de milhares de pessoas, ao vivo. Falsa impressão: ela domina com habilidade suas plateias, e turbina os arranjos do disco para obter mais efeito de mobilização popular, por assim dizer.

Ainda assim, para se despedir, ela escolheu a mais sombria e triste canção do álbum novo, No Light No Light, um tipo de abandono existencial. Que se dissolve num coro escorrido, solto no espaço. As composições de Florence são barrocas, mas ela as entrega ao público numa embalagem de batidas sintéticas, sintetizadores e pulsão techno, quase de dancefloor.

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É um paradoxo curioso: ela é sagrada e profana ao mesmo tempo, é reflexiva e alienante. Florence ajoelha, mas não reza, apenas exorta a multidão a uma mudança de paradigma do gosto. O ano começa pelo topo.

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