Bruce Springsteen volta para New Orleans

ROBERTO NASCIMENTO - New Orleans (EUA)

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Por Redação
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A última vez que Bruce Springsteen esteve em New Orleans se tornou um marco na reconstrução da cidade. Era 2006, ruas viradas do avesso pelo furacão Katrina ainda exibiam rastros de caos, residentes continuavam espalhados pelos arredores do Estado da Louisiana. Springsteen, Bob Dylan, Herbie Hancock e outros então fizeram uma histórica edição do Jazz & Heritage Festival, realizado todo mês de abril há 40 anos.

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Músicos tocaram de graça; fãs compareceram tanto pelo jazz quanto para demonstrar apoio à Big Easy. Springsteen resumiu o espírito solene do festival com uma catártica versão de When The Saints Go Marching In - o hino de New Orleans - tocado não como fanfarra, como fazem as brass bands locais em cortejos fúnebres, mas como um lamento gospel, andante e emotivo.

O cantor voltou a New Orleans neste fim de semana, e mais uma vez encerrou o primeiro fim de semana do Jazzfest, que vai até domingo, com The Saints. A história, no entanto, foi outra. Quase sete anos após a catástrofe, a moral da cidade encontra-se ressarcida, embora o estrago seja imperceptível apenas em partes turísticas (o famoso Lower Ninth Ward, por exemplo, bairro pobre que sofreu com a enchente, é hoje um terreno baldio, quase uma selva, onde tudo é depositado, de entulho a corpos assassinados).

Springsteen emendou The Saints no final de Rocky Ground, single do novo disco Wrecking Ball. Uma voz tranquila entoa "nós temos viajado sobre terreno rochoso", repetidamente, como mantra, e a mensagem é clara: "Eu compreendo o sofrimento de vocês." Foi o toque de mestre em um set concebido especialmente para o festival, que culminou não em um dos heroicos destaques de seu cancioneiro, mas em um hino espiritual, e ressaltou o poder de comunhão de Springsteen sobre o público.

Há três décadas, Bruce Springsteen é o denominador comum do proletariado americano. Sua ascensão, de garoto pobre dos subúrbios de New Jersey ao Olimpo do rock, é uma história de triunfo que reverbera em praticamente todas as tribos brancas do país. Já foi recontada em diversas formas, com diversos personagens, em suas músicas (vide Born to Run, The Promised Land, ou a recente Wrecking Ball).

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Neste domingo, sob um sol de fim de tarde no Fair Grounds Race Course & Slots, o Jockey de New Orleans, Bruce comoveu uma multidão de, no mínimo, 70 mil pessoas. Eram tribos díspares, cada uma reunida sob as características bandeiras ostentadas pela plateia do festival.

Bandeiras do Líbano e de Israel, bandeiras com Jim Morisson e Bob Marley, com o arco-íris gay, ou com a bandeira americana: todos receberam as mensagens elétricas desferidas pela E Street Band como se estivessem em uma congregação (nada muito distante de um megaevento de uma igreja evangélica).

O grosso do set foi composto de destaques do novo disco, que atira pedras e aponta dedos para o status quo americano, culpando o indefinido "homem", talvez a caricatura de um banqueiro ganancioso, ou de um político despreocupado, pela recessão econômica atual. E por boa parte do show, Springsteen falou alto e claro sobre acordes que vibram vitoriosos em seus refrões. Tocou e cantou com a raça de um volante uruguaio, amparado por uma voz semirrouca que deu ainda mais legitimidade à sua causa.

Recebeu o bamba local Dr. John para um cover de Something You Got, do obscuro cantor de R&B de New Orleans Chris Kenner. Deu temperos de música cajun, com violinos e acordeões em algumas canções; inseriu ritmos de second line, a matriz rítmica do jazz, oriunda de New Orleans, em outras. Suas melodias não só prometeram um futuro melhor, como convenceram a plateia de que ele será possível.

Este nível de energia, no entanto, não se sustenta por duas horas (a catarse vem em ondas, não dura como um orgasmo tântrico). Assim, o miolo do show caiu na mesmice, e sua mais delicada reta final, com Born To Run, Dancing in the Dark e The Saints, foi uma aterrissagem eficaz do esperançoso voo de Bruce.

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