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Cia Gare navega na 'Banheira Revolucionária' de Matéi Visniec num mundo nada pacífico

Seja no absurdo de Beckett ou nos rinocerontes de Ionesco, a crueldade integra um caminho formidável do caráter tão antigo do homem civilizado.

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Por Leandro Nunes
Atualização:

Pela mão forte da violência fundou-se sociedades e gerir o poder implica reconhecer que o punho cerrado também é capaz de mobilizar populações, em tempos fanáticos.

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Tal como a paz, a crueldade não garante o perfeito funcionamento das instituições - não por muito tempo. Xenofobia, racismo, machismo e homofobia se articulam pela violência e, sob ameaça de ruir, permanecem em pé alimentados pelo medo.

Nesse equilíbrio instável, a crueldade surge então como resposta às crises. Dos problemas da imigração à tortura moderna nos porões dos supermecados, o sofrimento imposto sugere que a crueldade poderia muito bem estar figurada ao lado da solidariedade, na forma de postura política no mundo, como ação concreta.

Sem poupar ideologias, a Cia Gare de Campinas adentra o texto curto Banheira Revolucionária, presente em Cartas de Amor a uma Princesa Chinesa, do romeno Matéi Visniec, para desbravar o cinismo proposto pelo autor.

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FOTO: Jamil Kubruk Foto: Estadão

No palco do charmoso Theatro Avenida, em Espírito Santo do Pinhal, A composição de uma banheira e banquinhos como cenografia, seus diálogos sintéticos e diretos surgem como ambiente ideal para captar as abstrações que vão alimentar o quarteto de clowns da companhia. No elenco estão Alex Midian, Giu Darros, João Delluary e Paty Palaçon.

É preciso acrescentar que a Gare se apresenta no contexto da mostra de teatro do Programa de Qualificação em Artes, das Oficinas Culturais.

"Ouçam, o mundo está fudido." A repetição emite um alerta e embarcar, não boiar, é um caminho para enxergar os bastidores desse mundo que se permite certa imaginação "inofensiva".

Aqui, a linguagem do clown no trabalho da companhia é o que amplia as oportunidades de dissecar ideologias que, aparentemente, são tão adversas.

Reconhecer que o problema do mundo é a diferença entre ricos e pobres, por exemplo, torna-se risível quando o time propõe o fim dos ricos. Na inviabilidade do projeto, sugerir o fim dos pobres também faz dessa reunião patética uma pequena conferência à deriva.

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Na cena, a companhia lança mão das diferenças construídas pelas pelas figuras como motor de ação. O aspecto inofensivo de imaginar um mundo ideal parece até atraente, revolucionário, como diz o título da peça.

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Nesse sentido, a brincadeira de supor um mundo mais fraternal não foge do horror da realidade de suas soluções. A crueldade pede a conta e oferece um espelho. Quem deve pagar pelo futuro?

Impacto no mundo também se dá na ausência, na negligência. O silêncio faz derreter geleiras com a mesma força que a indignação salva cãezinhos dos testes farmacológicos. Nessa banheira volátil, o feminino é o eleito a pedra de esquina. Esquecida e rejeitada por todos.

De um olhar social, o texto de Visniec salta e apela para a filosofia, ao encarar o Ser como parte do entrave por esse mundo mais fraterno. Depois ignora a lógica e destila cinismo com as vovozinhas.

Nessas transições, o grupo acolhe interlúdios com a música clássica que nem sempre favorecem ritmo à encenação.

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Mesmo assim, as personalidades ganham relevo na cena. Das brincadeiras e truques clownescos à narrativa de looping angustiante, o grupo encontra embocadura para debater o mundo à bordo de um ambiente rico aos tipos.

Há caminho para amplificar as reações que dão andamento para as próximas cenas. Talvez equilibrar o jogo que acontece apenas no palco e o que é realizado com o reconhecimento tácito da presença da plateia. Trata-se de uma maneira de multiplicar as interações, os acordos palco x palco e palco x plateia.

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