Na busca por concretizar uma realidade inventada, os games também começaram a aliar sua tecnologia com boas narrativas. Tem-se hoje, o melhor das histórias com as mais bem sucedidas experiências de imersão em universos virtuais.
Nada disso tem muito a ver com o projeto teatral Balada dos Enclausurados, a não ser o princípio, uma fome, que guia a ideia de especular modos de participação em de uma obra.
Tratada em parte como um experiência imersiva, criada por Kleber Montanheiro, em parceria com Eric Lenate e Erica Montanheiro, o projeto pavimenta o caminho para os solos dos dois atores. No primeiro horário, o público acompanha Inventário, de Erica, com direção de Lenate, em seguida é a vez do ator ser dirigido por ela em Testemunho Líquido. Também é possível assistir as peças em dias diferentes (foi o meu caso).
A concepção sacode um pouco a poeira da temporada paulistana em meio a produções que andam tão entediadas com os próprios discursos quanto cansadas para experimentar outros formatos.
Na criação de Kleber, ao público é confiada um diálogo anterior com as obras. Melhor, os detalhes da instalação dão conta de algo que não serve apenas para antecipar o teatro. Não se trata de cenografia. Luz, som e espaço inauguram um tipo de interlocução como uma prisão da mente, que será deflagrada na subjetividade exposta dos Enclausurados, junto a luz de Aline Santini e trilha L.P.Daniel e Luísa Gouvêa.
Em Inventário isso já começa no cenário. Os detalhes prosseguem na intenção de constituir dramaturgia. As batatas, a terra, os papeis. Não é difícil imaginar que eles serão apenas manuseados. O ponto de vista ao passado oferecido pelo texto de Erica não se priva de restituir à plateia a narrativa de uma artista abandonada pela família em um diagnóstico falso. No pequeno espaço, Erica é capaz de atravessar diferentes registros em sua interpretação, o que pode despertar fascinação ao público que a assiste pela primeira vez. Camille demonstra a vivacidade de suas reivindicações ressuscitando os familiares na direção audiovisual de Laerte Késsimos.
Testemunho Líquido tem estrutura distinta. Em movimento contrário a Inventário, o texto de Lenate aspira sobrevoar o mundo, da natureza ética dos crítico de arte à composição química dos remédios. O fluxo de suas palavras não se espelha ao corpo, mas contamina o outro. A imaginação incontida da mente estimula sua forma física em direção à libertação. Por sua vez, a limitação de um homem aprisionado, seus hematomas (atenção ao visagismo de Leopoldo Pacheco e Carol Badra) e sofrimento relembram a condição de atual fragilidade vivida por um grande talento da dança. A condição para o ator na cena é de mais risco, já que não há escape para a composição de voz e corpo trazida por Lenate que adquirem uma transmissão mais mono. No final, há uma - grande - exceção.
Se em Inventário, os objetos adquirem características lúdicas contribuindo para a construção do espírito perturbado da personagem, Testemunho Líquido passeia pelas ideias que ferem a pele e deixam rastros. O texto de Erica integra um olhar esperto de quem não é vítima da própria história, coisa que Camille não teve chance. Ao impronunciar um importante nome que atravessa a história pública da artista e escultora, a peça defende uma frente autônoma na vida da irmão da mulher.
Para o Nijinski de Lenate, A Sagração da Primavera se configura como um totem para o personagem. A canção que surge como de dentro torna-se acessível num um sonho distante para alcançar o que foi aquela escandalosa apresentação centenária em sua proposta radical para o balé. Sua obsessão o guiará, relembrando os acontecimentos de 1913, ao final de corpo de ruínas fabulosas.
A percepção do tempo também amplia os sentidos - ou entorpece. Nas horas que se arrastam de imobilidade em Testemunho Líquido, em Inventário o tempo adquire a simetria de uma ampulheta, no qual o começo é só um pretexto para revelar o potencial que há em todo novo final.