Ao acolher a leitura de sua produção se faz necessário olhar atento ao passado, de montagens a encenadores, de críticos a especialistas. Por sorte, temos um artista nacional que se dedicou não apenas a pensar a sociedade brasileira, mas também desprezar a realidade.
Um nome que surge tão próximo é o de Antunes Filho, que estreou Nelson Rodrigues, o Eterno Retorno, em 1981. Uma pena que o dramaturgo não teve a chance de apreciar a montagem que condensava Álbum de Família, Beijo no Asfalto, Toda Nudez Será Castigada e Os Sete Gatinhos. Tarefa difícil.
Ao recusar se apoiar em uma condução de comédias de costumes, que muito influenciava o tom das montagens do texto naquela época, Antunes foi mais quântico ao ponto de alcançar um núcleo nunca antes acessado.
Em Os Sete Gatinhos, por exemplo, o caminho posto só revelava a peça como um manual de perversidades sexuais, no máximo o terror de ressentimento misturado à luxúria, ao libidinoso, tão odiado e celebrado pela religião. Com o tempo, as peças de Rodrigues deixaram de ser consideradas filhas órfãos do teatro mundial, demonstrando concentrar em sua identidade forte relação com a tradição teatral erudita. O crítico Sábato Magaldi se dedicou a destrancar essa fechadura no livro Teatro de Obsessão.
Nesse sentido, o que Antunes fez foi despir os textos de uma abordagem voltada à crítica de costumes e mesmo um retrato farsesco da sociedade. Seu intuito sacralizou a criação de Rodrigues no gênero trágico.
É inegável que a persona jornalística do pernambucano - carioca de coração - e suas falas debochadas em entrevistas e no jornal criavam ruídos diante de sua extensa e autônoma produção dramatúrgica. Montar o sonho cruel de Vestido de Noiva, por exemplo, tendo em mente o debochado comunicador, é se perder no fosso entre criador e criatura.
Talvez este seja o desafio de Os Sete Gatinhos, do grupo Caboclo Ventura, de Santa Gertrudes, apresentado como um espetáculo em processo de criação, durante a mostra de teatro Qualificação em Artes, da Poiesis, na cidade de Espírito Santo do Pinhal. Ao se apoiar na estética malandra e sensual típica de um Rio folclórico, a montagem alcança em sua pesquisa estética menos uma ampliação das figuras do que libertação. Apesar de ser uma partícula da peça, a personagem de Silene, a criança, sustenta o início da trama no registro apontado pela direção, o que ainda não oferece espaço para o elenco. São eles: Ana Freitas, Gabriel Reis, Gabriela Amaral, Gustavo Raizer, Laura Gasparini, Leonardo Gasparini, Letícia Vitorino, Priscila Silmo, Ryan Siqueira, Mon Rá Bortolato.
Quando Antunes encara o trágico na obra de Rodrigues, não há barreiras para o aspecto psicológico das personagens. A sensualidade que nos parece tão natural e civilizada nos corpos tropicais comunga com a repressão religiosa sem, necessariamente, se encerrar, como um ciclo que se retroalimenta.
Talvez o ambiente político atual tenha nos convencido de que liberdade e repressão nasceram para se anular resultando em certa alienação ou em esgotamento. Mesmo assim, há outras dimensões em jogo, muitas vezes invisíveis.
A criança que é acusada de matar uma gata prenha aponta para a condição da família, mas isso favorece a dramaturgia, portanto um posicionamento textual do autor. Ao encená-lo, é preciso deslocar os fundamentos do que entendemos como família, por exemplo, e o risco de sua manutenção diante do patriarcado, num claro aceno ao destino de Édipo. Ao recusar o registro local do autor, encontramos símbolos e arquétipos mais consolidados na filosofia, na psicologia e nas artes.
A chance do Brasil produzir um autor tão fascinante prova que o teatro pode e consegue revisitar sem medo a obra de Nelson Rodrigues. Celebrar sua dramaturgia e as montagens de suas peças nos é sempre um risco de querer inventar a roda. Mesmo assim, Antunes insinuou que pode haver outras trilhas que apenas deslizar para os lados. Quem sabe mais para cima, ou mais para baixo.