Leandro Nunes
05 de setembro de 2016 | 21h12
É difícil compreender as pessoas gritando ‘Fora, Temer’ quando elas estão com a barriga cheia de sopa. Esta cena protagonizada por parte do público paulistano durante a sessão do último sábado, 3, do espetáculo NÓS.
Nele, o Grupo Galpão coroa sua trajetória de 34 anos apostando em uma montagem que desatina uma via performativa, dirigida por Marcio Abreu.
Por se tratar de uma efeméride, a montagem carrega consigo um curioso movimento de quem se vira para trás, a fim de olhar o que se passou. Igualmente, a peça se afirma no presente ao tentar descobrir como todas aquelas pegadas nos trouxeram até aqui.
O que mobiliza o trabalho da companhia é o desejo de falar de questões que tangenciam a política, o que se distancia das típicas polarizações da internet e de partidos políticos. A rigor, NÓS tem partido mas não é partidário. Ainda assim, nada disso é relevante para o que vem a seguir. De fato é um alento para o público paulistano, ao perceber que não é preciso ser rabugento para fazer saltar a veia política de uma obra, levando em conta o que é produzido por uma parcela do teatro de grupo da cidade.
Em cena, a companhia apresenta um encontro trivial entre amigos/parentes/colegas, não importa. O objetivo deles é o de preparar uma sopa. Salvo engano, não há citações ou falas que revelem que esses personagens estão com fome. O que é interessante, pois a necessidade de comer seria o motivo primordial ao preparar uma refeição.
Todavia, a reunião dessas pessoas redimensiona o ato de cozinhar, como qualquer encontro ao redor de uma mesa. Não se trata, meramente, de saciar a fome. Aquele encontro não é um fim, mas é um meio (como se revelará lá na frente).
Isso é corroborado pelo manuseio distraído dos alimentos. Coisa impensável, para quem costuma cozinhar. O alimento escolhido, o modo de descascá-lo, o tamanho, as combinações e o tempo são características que influenciam e são influenciadas quando se deseja um determinado resultado final: uma refeição. Esse gesto com os alimentos não quer dizer falta de zelo, mas trata-se de uma ação de caráter impessoal, terceirizado.
Tal ato se distingue da maneira como alguns atores empunham as facas, enquanto opinam sobre um caso de agressão. As pontas não estão em riste, mas substituem o dedo indicador de cada interlocutor, a fim reforçar o sentido de certas frases, ou fazer-se ouvido. Assim, não há um desejo explícito de violência entre eles, mas é sugerido um comportamento inconsciente.
Assim, instaura uma confabulação, na qual um objeto incorpora-se ao corpo para expressar uma intenção. A faca que substitui o dedo, outrora responsável, é aglutinada com sutileza. E diante dessa dança, algo continua sendo tramado.
Os atores interrompem a sopa para mergulhar em uma performance musical, em corpos que se afirmam no palco, para além da narratividade comum praticada pela companhia. Aqui, a intensidade dos atores confirma a escolha de Marcio Abreu na direção. Vê-se corpos, cidadãos e artistas. Imagens que se justapõem despidas com a Lama, música de Aylce Chaves e Paulo Marques.
O retorno à sopa tem sua virada, confirmada na atitude “democrática” tomada pelo grupo de excluir Teuda Bara. Como ponto central da trama, a atriz tem sua importância questionada. Os alimentos vão para a panela. Cozinhava-se um golpe. As falas se remetem claramente ao recente processo de impeachment que destituiu Dilma Rousseff. “CANALHAS!”, a atriz grita.
O tratamento grosseiro com a mulher desfaz o encanto da comunhão. Não será preciso facas, mas é pela violência que se vai justificar a busca pelo bem comum. “Vamos contar até 30 e você sai.” E ela é enxotada.
O que resta após o silêncio de sua partida é que a reunião caminhe, afinal, isso seria melhor para o grupo. O horror mesmo está na distribuição da sopa, que corre de mão em mão na sala de espetáculo. Quando todos os atores são servidos, o procedimento testa o público, o qual boa parte aceitou indiferente, como um consolo quentinho e nutritivo.
Por fim, o retorno de Teuda é inevitável e o tratamento praticado pelos colegas passa a ser simbólico, elegendo-a como uma entidade inspirável, uma vez que é agora inofensiva, não faz parte do coletivo.
No fim da sessão, quando o coro de ‘Fora Temer’ se engrossou pelo público bem alimentado, a caipirinha se revelou o elemento mais legítimo dentro daquele teatro.
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