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Resenhas de espetáculos, livros e novidades do palco

A música redentora de 'Nuon'

Fazer o acontecimento teatral se realizar exige, mais que esforço e paixão, uma boa dose de confiança. Ainda mais: é preciso atomizar esse sentimento para potencializá-lo no real - o que vemos, ouvimos e percebemos em cena.

Por Leandro Nunes
Atualização:

De maneira prática, é preciso provocar com certo atrevimento a equipe criativa com quem se trabalha, sejam estes integrantes do elenco, responsáveis pela sonoplastia, criadores do figurinos e iluminação. A presença de desconfiança no potencial de cada artista é um desafio a lidar nesse tipo de trabalho - ou não se faz teatro, arte das mais solidárias e coletivas no que diz respeita a criação.

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Para tal modelo, entretanto, as regras não se acomodam assim tão facilmente, as diferentes hierarquias que constituem o teatro no Brasil são sinais de pluralidade e de certa heterogeneidade saudável as quais permitem que a fruição por diferentes materiais e estéticas redundem em obras que atravessam o tempo e o espaço.

Levando em conta o tamanho do País, isso interessa ainda mais, o que prova a diversidade de lógicas internas na organização de um teatro local que se propõe a pensar o mundo.

 Foto: Kelly Knevels

Ao conjugar pesquisa e a reflexão sobre o regime cruel do Khmer Vermelho, no Camboja, o grupo curitibano Ave Lola narra o drama de refugiados da guerra durante a década de 1970 no país.

A deriva estética e a criação de figurinos, caracterização e música delineia o perfil das diversas figuras apresentadas em cena. Atingidas por um arquétipo, as personagens carregam essência da cultura do sul da Ásia, no qual a ancestralidade ainda ecoava e a força dos deuses era solicitada diante do perigo.

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Essa construção atravessa os atores: da poesia que a devoção funde na corporeidade ao substrato cultural expressivo que se choca com o imaginário diante da dor real de um regime que mata pessoas. A força brutal da guerra, presente, curiosamente é superior à morte - esta, é fraca afirmativamente, ante as memórias vividas - uma vez que Nuon retrocede para conduzir a narrativa.

Para além da visualidade criada pelos corpos, figurinos e cenografia, a música de Mateus Ferrari se instaura como o grande espetáculo, de fato. Ao demonstrar que a diversidade das notas e instrumentos são capazes de se reconstruírem, a direção musical desobriga as palavras, criando um pano de fundo que suporta o desvelamento do drama, e da busca da beleza diante do medo e do perigo, e fortalece as miudezas poéticas e espaciais do cotidiano.

Ao lado do trabalho corporal dos atores, os músicos são responsáveis pelo esteio criativo da montagem que prescindiria até mesmo de texto falado, dado a diversidade de sonorizações criadas por instrumentos e suas combinações.

 Foto: Kelly Knevels

Nesse sentido, a única âncora capaz de estacionar a montagem de sua leveza acidental é o texto falado, por assim dizer. Com tons mais de literatura, do que de teatro, a narração enfadonha da personagem mais velha, Nuon, é capaz de emperrar aos trancos as cenas anteriores.

O excesso de adjetivos e advérbios de modo no texto (completamente, extremamente totalmente, profundamente) denunciam falta de intimidade com dramaturgia, considerada aqui mais que um texto escrito para ser falado em cena.

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Ao não conseguir concretizar um interlocutor para si - não fica claro se ela dialoga com a plateia, consigo mesma, ou com ninguém - a personagem não carrega potência de uma fonte de memórias e passa a flutuar pelo palco carecendo de realidade. Cabe a ela o espaço de vírgula deslocada na fluência do espetáculo.

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Ao pensar na confiança como matéria-prima de um bom teatro construído e assinado coletivamente é preciso considerar suas partes - música, elenco, luz, texto e direção - como elementos essenciais que se retroalimentam esteticamente com um fim comum, e menos como remendos costurados em um cobertor pequeno numa noite fria.

Ainda que funcione em um ensaio, a cena é cruel e igualmente generosa para desvelar possíveis rebarbas e outras ausências simbólicas. Assumir a competência da própria equipe exige, às vezes, desistir dos próprios fetiches e personalismos, nesse caso, o texto. Não é uma atitude para se tomar em cena, certamente, no entanto, quando a confiança estiver lá, nós vamos enxergar.

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