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Resenhas de espetáculos, livros e novidades do palco

A infelicidade comum de 'Fim de Partida'

Leandro Nunes

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Por Leandro Nunes
Atualização:

É preciso rir com Samuel Beckett. É quase imperativo, se quiser sobreviver à blindagem de suas histórias. A razão é porque seus textos dificultam a mania de forçar analogias, colar comparações com a 'vida real' que amenizem o desconforto frente ao absurdo.

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Isso não quer dizer que não vamos recorrer a comparações para tentar compreendê-lo. Esse absurdo pode ser o comichão causado por olhar para um espelho e perceber que ele só reflete parte de você, a outra parte é vagamente desconhecida. É preciso rir com Beckett para compreender a razão de sua imagem estar parcelada e mesclada a de outros. Ele já disse que um individuo é só uma sucessão de outros indivíduos. Ou seja, o espelho de Beckett reflete e edita o objeto refletido. É um e todos.

Progredindo: Rubens Caribé e Eric Lenate Foto: Estadão

Diante desse óbvio visto a olho nu, um par de globos oculares saudáveis é um desperdício, por exemplo. Beckett então soa como a gargalhada de um velho que dispensou enxergar o óbvio. "Nada é mais engraçado do que a infelicidade, eu lhe garanto. Sim, sim, é a coisa mais engraçada do mundo."

Há algum tempo sociólogos e antropólogos contemporâneos alertam para o aumento da infelicidade e ansiedade no mundo, embora essas sensações não precisem de muita ciência para serem diagnosticadas. Mas a ausência de sorrisos e risos ainda não caracteriza o sujeito infeliz, pelo contrário, recorremos a melancolia, dizem os sociólogos e antropólogos contemporâneos, por sua eficaz casca protetora. Isso concede ao novo sujeito melancólico um distanciamento, um abismo emocional que o permite enxergar criticamente os 'felizes' e 'infelizes'. O raciocínio, então, é instrumentalizar a vida a fim de mitigar a infelicidade com o objetivo de conquistar, finalmente, o status de cidadão feliz.

Em Fim de Partida, Beckett não permite que esse jogo aconteça. A vida e a existência não estão disponíveis para as demandas macabras da felicidade. O feliz é completo. É texto direto, subordinado e com ponto final. Não existe revés, nem paisagem negativa sob a qual gastar tempo observando. Aliás, aí está uma pista para investigar o espetáculo montado por Eric Lenate: observar.

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A peça encontra repouso no cais musical de uma sonata, em uma trilha que não pretende comentar, tampouco incorre em reinstalar instantes dramáticos ou ilustrar as emoções das personagens. Se o silêncio é importante, o diretor abriga o som de L. P. Daniel no conjunto da encenação, conferindo ao músico intervenção criadora. Um pequeno descuido desembocaria no total avesso: um texto de Beckett com trilha brechtiana. Não consigo imaginar um Hamm épico-opressor de classes...

Adeus ao Lago de Como. Ricardo Grassom e Miriam Rinaldi Foto: Estadão

Ao lado da música, o elenco se imbuiu da mesma energia. As figuras concebidas carregam em suas vozes os aspectos mais interessantes. O diretor que também está no elenco puxa a fila com um Hamm que ferve por dentro. Se o velho paralítico e cego precisa de apoio para se locomover, dentro dele parece haver um vulcão, vivo, que lança em erupções uma horda de risadas guturais. Às vezes, elas parecem se repetir como um cacoete após todas as falas, principalmente depois da segunda metade da peça. A caracterização de Hamm se faz hipnótica com os olhos leitosos, solução tão simples quanto original, diante dos esporádicos Fim de Partida e Fim de Jogo que entram e saem de cartaz na cidade no máximo os intérpretes costumam usam um par óculos escuros.

Rubens Caribé, Miriam Rinaldi e Ricardo Grassom completam o cortejo na construção desse complexo emocional a partir das vozes. Emocional aqui não implica em sentimentalismo, mas na racionalização de perfis alquebrados, que carregam dentro de si os vultos da humanidade e revelam no corpo as sequelas desse destino. A única atriz do elenco surge como possibilidade suave diante do trio de graves masculinos. Em outra frequência, Miriam fornece à senilidade de Nell uma comunicação mais oblíqua e diversa ao brutal apocalipse.

Sigmund Freud deduzia que o trabalho da psicanálise era o de destronar o aspecto determinista das doenças, o tal do sofrimento histérico, e alcançar com seus pacientes o modesto nível de 'aptidão para a existência', o que ele chamava de 'infelicidade comum'. Quando Beckett edifica o quarteto confinado no bunker ele mirava isolar o tempo. Talvez para tentar espremer do mundo o seu suprassumo. Talvez não. Como o dramaturgo afirmou em outra ocasião, ele entreviu o mundo que deveria criar para conseguir respirar. Fim de Partida é a tomada de fôlego junto com a descoberta do quão comum (e engraçada) a infelicidade é.

 

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